Entre as lógicas de fechamento de fronteiras e a mera instrumentalização económica, prolonga-se a injustiça face aos direitos das pessoas migrantes. E alguma esquerda não se isenta dessa tendência.
Não se pode afirmar que o percurso político de Sahra Wagenknecht ou os resultados do seu homónimo partido nas recentes eleições na Turíngia e Saxónia, na Alemanha, tenham sido surpreendentes. Tendo assumido cargos de destaque no Die Linke, incluindo o de líder parlamentar, Sahra Wagenknecht distinguiu-se pelo discurso populista e nacionalista face à imigração e pelo ceticismo relativamente às alterações climáticas. Em 2018 constituiu o movimento Aufstehen (De Pé), com o propósito de disputar eleitorado com a extrema-direita, dando centralidade às questões sobre asilo e recorrendo com frequência a um argumentário muito próximo do utilizado pela Alternativa para a Alemanha. Em 2023, Sahra Wagenknecht anunciou a formação de um novo partido criado, literalmente, à sua imagem e semelhança: a Aliança Sahra Wagenknecht. Aproveitando um período de declínio do Die Linke e as várias sondagens que apontavam para uma aceitação generalizada de políticas restritivas face à imigração e acolhimento de refugiados, a Aliança assumiu-se como uma “nova via” à esquerda, clamando uma reaproximação à classe trabalhadora e exigindo limitações à entrada de estrangeiros no país. Com um discurso xenófobo, mas aparentemente mais polido do que o que tem sido apanágio da extrema-direita, a Aliança serviu-se de medos e preconceitos e alcançou, desse modo, o terceiro lugar nas eleições na Turíngia e na Saxónia.
A imigração como questão divisiva
Poderíamos refletir sobre o enquadramento ideológico do partido Aliança, mas tal discussão afigura-se estéril e pouco relevante. O debate em torno da imigração continua a revelar divisões profundas entre diferentes correntes políticas à esquerda, e os discursos anti-imigração há muito que deixaram de ser um exclusivo da direita ou da extrema-direita. O apogeu desta nova era revela-se na aprovação do Pacto das Migrações, uma vitória da agenda política da ultradireita, que impõe um pendor securitário às políticas migratórias da União Europeia (UE) e implementa novos procedimentos em matéria de asilo, para agilizar deportações, externalizar a gestão das fronteiras europeias e impedir a entrada dos requerentes no espaço europeu.
Segundo dados oficiais[1], em 2023 viviam na UE cerca de 448.8 milhões de pessoas, sendo que apenas 6% dos residentes não tinham cidadania europeia e 9% tinham nascido fora deste espaço. E desde 2020 o número de entradas de imigrantes em situação irregular no espaço europeu (ou seja, sem cumprirem os procedimentos administrativos previamente impostos pelos Estados de acolhimento) manteve-se estável, tudo levando a crer que haverá um decréscimo em 2024[2] – até à presente data, registou-se a entrada de 157.319 pessoas (cerca de 0,035% da população residente na UE). Perante este enquadramento factual, como se justifica então que uma taxa tão pouco significativa de pessoas determine sentimentos e orientações políticas xenófobas, até mesmo em setores políticos mais à esquerda?
As políticas públicas sobre imigração foram sempre desenhadas em função, sobretudo, de perspetivas nacionalistas e securitárias. Seguindo a posição mais conservadora, a imigração é entendida como um fator de risco para as identidades culturais nacionais e europeia, como um elemento disruptivo nas relações sociais autóctones e no funcionamento das suas instituições, sendo responsável pelo aumento do desemprego, da instabilidade das relações laborais, da criminalidade e da perturbação da paz social. E é este enquadramento que tem justificado o controle rígido de fronteiras e dos movimentos migratórios.
Os efeitos práticos destas medidas são conhecidos. O discurso securitário e a perspetiva nacionalista não resultam num decréscimo de fluxos migratórios, mas determinam um aumento de violência sobre comunidades imigrantes, a sua marginalização e precariedade ao nível das relações de trabalho, do acesso à habitação e da proteção da saúde, e conferem terreno fértil para a atuação de máfias numa economia paralela, que lucra em todas as dimensões onde o Estado não está presente[3].
Migrações e desigualdades
Todos os dias, milhões de pessoas decidem abandonar o local onde nasceram, para construir outro projeto de vida. E, sendo certo que existem tantos projetos quantas as pessoas que os sonham, também é verdade que a esmagadora maioria desenha esse percurso em função de normas do mercado laboral e das hipóteses de sobrevivência ao seu alcance – onde houver desemprego, guerra, fome e seca, ocorrerão êxodos mais ou menos massificados; onde houver oferta real de emprego, haverá imigrantes em busca de trabalho. Efetivamente, existem motivos ou causas “padrão” para a maior parte dos movimentos migratórios, que se reconduzem, essencialmente, a três ordens de razão: económicas, humanitárias e ambientais. Onde existirem assimetrias de desenvolvimento económico e social, territórios de pobreza extrema ou economias que colapsaram, onde se verificarem conflitos bélicos e instabilidade social e nos locais que se tornaram inabitáveis devido a alterações climáticas, existirão sempre pessoas que pretendem melhorar as suas condições de vida. Os movimentos migratórios são uma consequência da globalização e são inevitáveis, sendo certo que as pessoas que decidem imigrar, não sendo responsáveis pelas ditas assimetrias, são as suas primeiras e principais vítimas. Nesse sentido, os territórios que proporcionam respostas positivas aos anseios de quem decide imigrar – trabalho, habitação, alimentação e paz – serão naturalmente escolhidos como destino, independentemente das restrições que sejam impostas à entrada.
Do conservadorismo aos interesses económicos
A esta visão estática e anacrónica das relações sociais, têm acrescido perspetivas utilitaristas sobre a imigração: as políticas serão mais ou menos permissivas à entrada de pessoas imigrantes na medida em que estas preencham necessidades económicas específicas do espaço europeu. A entrada é admitida a quem preencher quotas, seja para assegurar mão-de-obra para setores como os da agricultura, construção civil e turismo, seja para equilibrar as contas dos regimes de segurança social.
A este propósito, importa referir que, efetivamente, face ao envelhecimento da população europeia, os números da imigração apresentam vantagens consideráveis para a economia, para o mercado laboral e para a sustentabilidade do Estado Social. Vejamos o caso português: de acordo com o Relatório do Observatório das Migrações para 2022[4], os estrangeiros residentes no país foram responsáveis por uma contribuição líquida positiva para a Segurança Social, de 968 milhões de euros em 2021 e 1.604,2 milhões em 2022. Também de acordo com os dados revelados pelo jornal Público em 29 de setembro de 2024, as contribuições de estrangeiros para a segurança social subiram 44% em 2023[5].Para garantir a sustentabilidade da segurança social e o crescimento da economia portuguesa, a participação ativa de imigrantes parece ser a solução[6].
Estes factos são relevantes. Mas uma sociedade que se assume como um verdadeiro projeto humanista, inclusivo e solidário, que respeita os valores da liberdade e da igualdade, não pode bastar-se com este rol de sucessivas justificações para o acolhimento e inclusão de imigrantes. A imigração deve ser reconhecida como um direito efetivo, fundamental e universal, independentemente dos motivos que sustentam a decisão de quem imigra ou dos benefícios económicos que a imigração possa vir a trazer para o território de destino. Historicamente, esse tem sido o papel da esquerda, enquanto defensora e garante de uma visão internacionalista e solidária, que afirma a necessidade de proteção social e jurídica dos direitos das pessoas imigrantes e refugiadas. É este o ditame estabelecido pelos princípios universais da igualdade, dignidade humana e liberdade. E o que se reclama é uma verdadeira alteração de paradigma sobre a imigração: uma perspetiva que não a interprete como um problema, nem como uma vantagem meramente económica, mas que a reconheça como um direito universal e que garanta a defesa dos direitos políticos, culturais, sociais e económicos das pessoas migrantes.
Insistir no direito à migração
Não obstante, vários espaços políticos à esquerda têm vindo a adotar discursos e agendas anti-imigração, sobretudo em contextos de fortes tendências nacionalistas e crescimento da extrema-direita, argumentando que os fluxos migratórios pressionam o mercado laboral ou que aumentam a precariedade das condições de trabalho ou que destroem a solidariedade entre a classe trabalhadora. Porém, este somatório de considerandos mais não é do que o espelho da realpolitik. Na verdade, a insegurança e a fragilidade material criadas por décadas de supremacia neoliberal e consecutivas crises económicas têm criado um ambiente político favorável a líderes autoritários e discursos securitários. E como grande parte da população está disponível para as narrativas sobre segurança apresentadas pela extrema-direita, todos os demais setores políticos têm caído na armadilha, aceitando a canibalização das suas agendas políticas e mimetizando as mesmas diatribes xenófobas e racistas.
É necessário manter o foco na visão humanista e na defesa de políticas inclusivas, que permitam a circulação das pessoas, garantindo-lhes o acesso à educação, à proteção da saúde, à habitação e ao emprego digno, mas também à participação democrática e ao voto. E devemos ir mais além do que o mero espaço de debate e discussão nacional: o cerne da preocupação deve residir no combate às desigualdades e assimetrias de desenvolvimento global, na cooperação internacional, no combate às alterações climáticas e na promoção da paz. As soluções para estes problemas devem transcender fronteiras, porque a raiz dos mesmos é global. Para a esquerda, este caminho não pode ser pautado por meros taticismos eleitorais, nem por concessões a medos – é preciso reafirmar a visão de um outro mundo, mais justo, mais solidário e mais inclusivo, onde todos possamos encontrar o nosso lugar. Sob pena de cairmos num infindável lamaçal.
[1] Cfr. dados do Conselho Europeu, in https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/promoting-our-european-way-life/statistics-migration-europe_en#people-living-in-the-eu-in-2023
[2] Cfr. dados do Conselho Europeu, in www.consilium.europa.eu/pt/infographics/irregular-arrivals-since-2008/
[3] O recente relatório “Tráfico de Seres Humanos 2023” do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, tutelado pelo Ministério da Administração Interna, aponta o valor mais alto em Portugal de vítimas de tráfico de seres humanos em 15 anos, identificando 650 registos de presumíveis vítimas em 2023, o que constitui um acréscimo de 72% em relação a 2022; o relatório indica também que a maioria das presumíveis vítimas foram sinalizadas para fins de exploração laboral (82,7%) – cfr. www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2024/10/OTSH_Relatorio-Anual-Trafico-de-Seres-Humanos-2023_outubro2024_divulgacao.pdf
[4] Cfr. www.acm.gov.pt/-/observatorio-das-migracoes
[5] Cfr. https://www.publico.pt/2024/09/29/sociedade/noticia/contribuicoes-estrangeiros-seguranca-social-subiram-44-2105832
[6] Numa entrevista recente ao Diário de Notícias, Óscar Afonso, diretor da Faculdade de Economia do Porto, afirma que, para assegurar um crescimento anual igual ou superior a 3%, seria necessário que entrassem em Portugal cerca de 138 mil imigrantes por ano – cfr. www.dn.pt/6666600562/estudo-portugal-precisa-de-138-mil-novos-imigrantes-por-ano-para-ganhar-riqueza/