A política industrial é, resumidamente, o conjunto de políticas públicas que visam promover a transformação estrutural da economia, habitualmente no sentido da promoção de setores considerados mais dinâmicos, qualificados e competitivos. Os instrumentos tipicamente mobilizados para esse efeito são diversos e incluem os subsídios, os benefícios fiscais, o acesso bonificado ao crédito, as compras do Estado, a criação de mercados protegidos por via de tarifas sobre as importações ou de limitações à entrada de novos concorrentes, etc.
Como tem sido documentado por uma longa tradição heterodoxa em Economia, o recurso à política industrial e ao intervencionismo estatal é algo de absolutamente típico na história do desenvolvimento capitalista. Isso aplica-se tanto às economias centrais, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, em particular nas suas fases de ascensão hegemónica, como aos casos mais bem-sucedidos de industrialização tardia promovidos por Estados desenvolvimentistas, incluindo na china e restante leste asiático. Contrariamente às teses do discurso liberal, a acumulação capitalista não dispensa na prática o papel ativo do Estado na criação de condições favoráveis a essa mesma acumulação, seja na criação de uma força de trabalho disponível e disciplinada, na criação e proteção de mercados ou na canalização de recursos públicos para assegurar a rendibilidade de certos setores.
Apesar disso, nas últimas décadas, a consolidação da ideologia neoliberal teve como peculiar característica a obnubilação desta articulação umbilical entre Estado e capital, pelo menos nos planos do discurso e da prescrição de políticas no contexto de formações sociais (semi)periféricas. Daí resultou o também peculiar facto de que, atualmente, talvez o principal aspeto que distingue a maioria dos proponentes de políticas de desenvolvimento consideradas heterodoxas e progressistas ser a sua defesa da intervenção do Estado na promoção da competitividade – por outras palavras, na promoção da acumulação. Esta peculiaridade é, pelo menos em parte, uma consequência do sucesso neoliberal na substituição da antinomia trabalho vs. capital pela mais superficial e ilusória antinomia Estado vs. mercado.
Ora, se a política industrial e o Estado desenvolvimentista não colocam necessariamente problemas de coerência para os proponentes de políticas de desenvolvimento que não se considerem anticapitalistas (se bem que a história dos Estados desenvolvimentistas realmente existentes tem sido muitas vezes uma história de repressão brutal de trabalhadores e classes populares, o que deveria ser um problema em si mesmo), essa questão já se coloca inevitavelmente para quem se oponha ao capitalismo e às suas lógicas. Como é que uma posição anticapitalista pode, em coerência, defender a mobilização dos recursos e do poder do Estado para apoiar a mesma acumulação que condena em virtude das suas consequências ao nível da alienação, da destruição ambiental e da geração de desigualdades múltiplas e crescentes?
Para responder a esta pergunta, julgo que é útil distinguirmos o curto do longo prazo estratégicos. No primeiro, da ação política mais conjuntural, parece-me aceitável e até fundamental a defesa da política industrial num sentido reformista progressista, se esta servir para melhorar a situação dos trabalhadores e classes populares e para evitar padrões de especialização e regimes de acumulação mais desiguais, mais empobrecedores para a maioria e mais destrutivos social e ambientalmente. No horizonte de longo prazo, o problema é mais complexo e julgo que obriga a optar por uma de duas posições: ou um marxismo teleológico, que considere o desenvolvimento capitalista das forças produtivas um objetivo suficiente, designadamente por conduzir com maior probabilidade à superação do próprio capitalismo – o que me parece inaceitável; ou a prioridade à deliberação democrática, à defesa do ambiente e à repartição igualitária da riqueza social, o que implica a rejeição da prioridade à acumulação – por outras palavras, a rejeição da prioridade à competitividade e ao crescimento.
Se assim é, conclui-se que a política industrial pode ser anticapitalista desde que vise promover a transformação estrutural da economia em sentidos que sejam favoráveis aos trabalhadores, às classes populares e ao ambiente. No curto prazo, isso pode ter uma lógica de mitigação dos malefícios do capitalismo e ser feito em nome dos trabalhadores e classes populares; no longo prazo, não dispensa a agência direta destes mesmos trabalhadores e classes populares, como não dispensa horizontes de transformação social mais profunda.