Pode o capitalismo ser popular?

“Karl Marx concebeu uma teoria. A propriedade das fábricas, bem como a propriedade da terra, eram a chave para o futuro. A propriedade não deveria, portanto, estar nas mãos de poucos, mas de algo que ele identificou como O Povo. […] Sim, o povo é proprietário dos meios de produção. Segundo a sua própria definição, a profecia de Karl Marx concretizou-se. É estranho constatar que é aqui, no capitalismo que ele condenava, que a promessa […] se cumpre”.

Este é um excerto de um panfleto publicado nos anos 1950 pela Standard Oil of New Jersey, gigante petrolífera hoje conhecida como ExxonMobil. Num outro anúncio da mesma época, celebrava-se no mesmo espírito a concretização do “Capitalismo Popular”, desenvolvendo que “os 376.000 proprietários com poupanças investidas na General Electric são típicos da América, onde quase todos os cidadãos são capitalistas”. A promessa do capitalismo popular também se fez sentir em Portugal, em particular a partir dos anos 90, quando o crédito barato fluía e começavam os grandes processos de privatização, com campanhas de compra de ações de empresas nacionais (e até então detidas pelo Estado) por parte dos trabalhadores e de pequenos investidores, como é o caso da EDP, da Portugal Telecom e da Brisa.

O discurso da democratização da economia através da expansão da propriedade e do acesso ao mercado de capitais não desapareceu com a viragem do milénio nem com a mais recente crise financeira global. Podemos até dizer que o investimento em bolsa é hoje, do ponto de vista procedimental, mais facilitado do que nunca. Com um regime regulatório favorável, os investimentos que eram limitados a uma classe profissional e altamente capitalizada ou que dependiam de intermediários bancários passaram a estar, em teoria, acessíveis a “todos”. Com o advento das plataformas de investimento online, é possível em qualquer lugar e numa questão de minutos começar a comprar e vender ações (ou frações de ações), divisas, matérias-primas, e uma série de outros veículos financeiros mais ou menos obscuros (neste mundo da finança criativa, o céu é o limite). A popularidade destas plataformas é impulsionada por narrativas de democratização e empoderamento individual, promessas vazias de “liberdade financeira” e muita publicidade. Para ilustrar este ponto sobre narrativas, gosto de invocar a imagem de um anúncio em que um popular desportista entra num café e se depara com toda a gente, do empregado de mesa à rececionista, a investir pelo telemóvel, fazendo troça de um outro cliente que “ainda” dependia de telefonemas com o seu intermediário financeiro para investir. A narrativa do potencial emancipador da democratização dos mercados de capitais não é só promovida pelas indústrias que mais têm interesse na sua expansão. A própria Comissão Europeia tem sido bastante ativa na promoção destes tipos de investimento, tendo publicado recentemente uma “Estratégia para os investidores não profissionais”, com o objetivo de “colocar os mercados de capitais ao serviço das pessoas, oferecendo-lhes maiores oportunidades de investimento”, lamentando ainda que a participação de pequenos investidores nos mercados financeiros da União Europeia é “reduzida em comparação com os padrões internacionais”.    

Para além do acesso direto à bolsa de valores, existem uma série de outros mecanismos que reforçam a ilusão de um capitalismo popular democrático. Em muitos países com sistemas de pensões privatizados, são promovidos – por vezes com incentivos fiscais muito vantajosos – os planos de pensões com base na aquisição de ações da própria empresa onde se trabalha (algo que nos Estados Unidos tem o nome de Employee Stock Ownership Plans – ESOPs). A atribuição de ações da empresa empregadora aos trabalhadores como forma de compensação, indeminização ou como substituto de uma parte do salário, são outros exemplos deste tipo de mecanismos. Finalmente, a participação em fundos de pensões privados pode também ser qualificada como uma forma de capitalismo popular, através da qual milhões de pequenos investidores vêm o seu capital investido, ainda que agregado num fundo, de forma dispersa pela economia mundial.

Ora, a ideia do capitalismo popular como força democratizante da economia é um mito. O capitalismo não é, nunca foi, popular e muito menos uma força democratizante.

Em primeiro lugar, não é popular porque em nenhum momento a propriedade foi generalizada. Até na época do panfleto supracitado que anunciava a concretização da utopia marxista, as estimativas menos conservadoras não apontam para valores acima dos 7% da população americana em posse de ações. Para além disso, a distribuição era altamente desigual. A concentração das ações era fortemente determinada em função do rendimento. Hoje, para além dos óbvios níveis de concentração crescente, os mercados de capitais representam novos perigos. A facilidade de acesso aos mercados e ao crédito, bem como a ludificação da experiência do investimento online, que não é muito diferente da de um casino ou das apostas desportivas, promove comportamentos de risco e aumenta a exposição à divida. Em vez de emancipar, o capitalismo popular coloca as pessoas em perigo. Democratizam-se os riscos, mas concentram-se os ganhos.

Em segundo lugar, o capitalismo só permite tipos de propriedade que não coloquem o sistema em causa. A dispersão de propriedade no capitalismo não coloca em causa a gestão orientada à maximização de lucro também porque em muitos casos a propriedade não implica controlo democrático. É assim com os fundos de pensões, é assim com os ESOPs e na maioria dos esquemas semelhantes de participação dos trabalhadores na estrutura acionista das empresas. Mais do que uma ferramenta para a determinação da direção das empresas participadas, estas participações servem para garantir rendimentos futuros. Já agora, também é assim com muitas empresas públicas, que são geridas como se de uma empresa privada se tratasse, com vista à maximização a curto prazo do lucro dos seus acionistas, com a diferença de que neste caso o acionista maioritário é o Estado. É assim por exemplo com a Caixa Geral de Depósitos, quem em vez orientar a sua operação às necessidades da economia portuguesa e de dar o exemplo, criando dinâmicas que poderiam contagiar o comportamento da banca privada, faz o oposto, colocando-se na linha da frente na implementação de medidas lesivas para os pequenos depositantes.

Mas e nos casos em que efetivamente os trabalhadores têm, para além da propriedade, algum controlo sobre a empresa? Os modelos de codeterminação, obrigatórios por lei em alguns países e muito comuns em empresas alemãs, permitem a participação dos representantes dos trabalhadores nos conselhos de administração, que ocupam de forma minoritária. Também em Portugal, a Constituição prevê o princípio de cogestão do setor público, que tem sido sistematicamente incumprido desde 1976. Estes modelos têm o potencial limitado de em alguns casos contribuir para a melhoria de condições de trabalho e para a resolução de conflitos laborais, mas de forma alguma constituem um exemplo de controlo democrático da economia. 

Por outro lado, é nas cooperativas onde podemos encontrar os resquícios mais visíveis de controlo democrático da economia no capitalismo. Realinhando a propriedade e o controlo, as cooperativas são capazes de envolver os seus cooperantes de forma que as suas decisões sejam orientadas não em função do lucro rápido, mas de outros interesses sociais. Este envolvimento permite uma concepção diferente da empresa, como uma realidade social complexa e não como capital. Permite também uma gestão radicalmente diferente, informada a partir da experiência dos próprios trabalhadores (aquilo a que o historiador económico húngaro Karl Polanyi nomeou de “visão geral interna”, isto é, o conjunto de fenómenos qualitativos que constituem os processos económicos e que não são materiais, e por isso não podem ser medidos através da estatística. Estes fenómenos pode ser, segundo o autor, tipificados em uma de duas categorias, como “necessidades humanas” ou “dificuldades subjetivas do trabalho humano”). A forma como o maior grupo empresarial basco e que é também uma federação de cooperativas, a Mondragon, lidou com a última crise é exemplo disso mesmo. Com a falência da fabricante de eletrodomésticos Fagor, uma das suas maiores cooperativas federadas, a maior parte dos seus trabalhadores, que numa empresa privada comum teriam como único destino o desemprego, foram reabsorvidos por outras empresas do grupo (um exemplo de “intercooperação” do tecido empresarial) ou tiveram acesso a reformas antecipadas – a Mondragon tem também um sistema de segurança social próprio. Na crise, a prioridade foi garantir o emprego. Ora, até os exemplos mais avançados de cooperativismo têm contradições: a mais insanável de todas é que não deixam de operar num sistema capitalista. Para se conseguirem sustentar, têm de ser competitivas nos mercados em que se inserem. Isto implica que estas empresas continuam a ser orientadas para o lucro, constrangendo e contrariando alguns princípios cooperativos e democráticos. Voltando ao exemplo da Mondragon, uma das principais contradições é que nem todos os trabalhadores são cooperantes. Para o serem, têm de comprar a sua posição no conglomerado. E essa opção não está sequer disponível para os trabalhadores internacionais.

A democracia económica que queremos conduz-nos à liberdade. Mas a nossa liberdade não é a liberdade negativa do investimento e da propriedade privada. A nossa liberdade é social, implica o reconhecimento do mundo humano e dos custos sociais que estão para lá do preço num mercado. Implica a substituição das relações competitivas e antissociais de capital por relações sociais cooperativas e solidárias. A verdadeira democracia é profunda e generalizada, não depende do mercado nem fica nem à porta da empresa – que deve ser reconhecida como uma sociedade social complexa. Por tudo isso, é impossível no capitalismo.