O neonazi Mário Machado e o seu grupo 1143, formado a partir de uma fação ultra radicalizada da Juventude Leonina e intimamente ligado aos Hammerskins, o grupo de extrema-direita mais violento das últimas décadas em Portugal, inquietaram a esquerda ao convocar uma manifestação “contra a islamização da Europa” no dia 3 de Fevereiro. A manifestação que atravessaria o Benformoso foi eventualmente rejeitada pela câmara municipal de Lisboa, por afrontar a tolerância, a dignidade humana e a constitucionalidade e por em causa as populações existentes naquele local. Apesar disso, o neonazismo confrontou no espaço público a sua reinvenção genealógica da “pureza” étnico-racial portuguesa.
O mito é basicamente a criação de uma história com intuito de explicar algo que o ser humano não compreende. A tradição não é invulgar no legado da supremacia branca, a construção da ficção da “raça branca” como superior às restantes. Esta teoria foi sempre flexível e flexibilizada – nos EUA e na sua fundação a imigração de diversos povos europeus distintos foi eventualmente criando uma identidade racial comum em oposição aos africanos que, ao serem moral, social e politicamente inferiorizados, passariam a poder ser escravizados e explorados economicamente. A criação de uma mitologia e universo simbólico (dos copos de leite às expressões “white power”) foi sempre crucial para a formação destas comunidades do ódio. No entanto, as novas expressões da supremacia branca alteraram hoje a sua face discursiva e utilizam o mecanismo psicológico da vitimização como ferramenta de recrutamento militante. Aí a teoria da grande substituição, a narrativa estatisticamente falsa sobre o projeto das elites políticas da ‘substituição’ dos povos originalmente ‘europeus’ por povos de outras etnias principalmente árabes, surge como crucial para transformar o discurso agressivo da supremacia branca pelo discurso de proteção da identidade nacional, étnica. Não será coincidência a utilização do slogan “Portugal aos Portugueses” ou “Racismo contra os Portugueses”.
O mito nacional português é particularmente evidenciado no discurso do Estado Novo sobre a pátria, mas não é esse o empregue pelo grupo de Mário Machado. 1143 é o ano utilizado por se referir à assinatura do tratado de Zamora que marcou a independência de Portugal em relação a Espanha, traçado como a origem da cultura portuguesa ‘originária’. À semelhança de outros grupos neonazis, a cultura árabe é definida como inimiga da cultura cristã.
Esta afirmação em Portugal afronta-nos. Não somente por promover o racismo, a violência e a xenofobia mas também pela ignorância histórica apresentada relativamente à presença árabe em Portugal e à composição étnica portuguesa constituída pelos povos dos dois lados do Mediterrâneo. Após o período pré-histórico, a população de Lisboa baseava-se estruturalmente em berberes com influências fenícias e de Cartago. É curiosa a influência que ficou no nome alface, a alcunha carinhosa dada aos habitantes do burgo de Lisboa. Foram os Cruzados (constituídos por ingleses, normandos, escoceses e germanos), o grupo idolatrado pelo grupo 1143, quem impôs a guerra santa e a alteração de um território onde múltiplas religiões conviviam para o monoteísmo católico. Como escreveu António Brito Guterres no Diário de Notícias “uma marcha sobre Lisboa, contra a sua islamização e com tarjas anunciando que vão “reconquistar Lisboa aos mouros”, só não é caricato porque sabemos o que querem, mas faz lembrar aquela vez em que um grupo de nazis portugueses foi à Alemanha conviver com os seus congéneres e foram expulsos, por serem mouros”.
É verdade que nós sabemos o que eles querem. Disseminar o medo e a ansiedade relativamente à multiculturalidade, tornar os imigrantes criminosos para justificar a ação de milícias e do autoritarismo. Estes não escondem muito a sua missão. Os mais perigosos são os lobos em pele de cordeiro que repetem incessantemente e banalizam teorias pseudo científicas que tentam justificar que culturas diferentes foram sujeitos fundamentalmente irreconciliáveis. Para que eles não ganhem precisamos de não ter medo.