Portugal: saúde, pensões e trabalho são os impasses à esquerda.

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Artigo de Adriano Campos, dirigente nacional do Bloco de Esquerda, publicado originalmente na International Viewpoint.


No final de 2015, as eleições legislativas resultaram num cenário inédito na política portuguesa. A coligação de direita que por quatro anos aplicou o programa de austeridade da troika, encabeçada por Pedro Passos Coelho (PSD) e Paulo Portas (CDS-PP), foi a força mais votada, alcançando 37% dos votos e 102 mandatos no parlamento nacional. No seu conjunto, o Partido Socialista (PS), com 32%, o Bloco de Esquerda, com 10,2% e o Partido Comunista Português (PCP/PEV) [1], com 8,2%, somaram 122 mandatos. Pela mão do então presidente, Cavaco Silva, a direita formou governo, para logo após sofrer uma moção de rejeição, abrindo caminho ao governo do partido socialista liderado por António Costa. Estava formada a “geringonça”. 

 

2015 – 2019: marcha-atrás na política de austeridade

Durante quatro anos (2015-2019), o Partido Socialista governou com o suporte do Bloco de Esquerda e do PCP no parlamento, sem que isso correspondesse à participação no governo. Ainda durante a campanha eleitoral, a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, lançou o desafio a António Costa, que se apresentava com o programa mais à direita na história do PS. Se os socialistas deixassem cair a facilitação do despedimento, a redução na contribuição patronal para a segurança social e o corte de 1600 milhões de euros nas pensões [2], estariam abertas as vias do diálogo entre os dois partidos. Forçado pelo milhão de votos à sua esquerda, com a direita em minoria, António Costa firmou dois acordos distintos, com o Bloco e o PCP, contemplando uma vasta lista de medidas, desde o bloqueio a novas privatizações, a devolução de rendimentos retirados pela troika, o aumento do salário mínimo e o reforço dos apoios sociais. O PCP rejeitou sempre negociações a três, concedendo ao governo do PS uma posição de força negocial, pois necessitava do Bloco e do PCP em conjunto para formar maioria.  

Ao longo dos quatro anos, a uma aplicação atribulada e incompleta das medidas acordadas, sucederam-se negociações anuais dos orçamentos de Estado, resultando em ganhos adicionais à esquerda, como foi o caso do PREVPAP [3], a proteção social dos “autónomos”, a redução do valor das propinas universitárias, uma nova lei de bases da saúde de sentido progressivo ou o processo de despenalização da morte assistida, este último ainda em curso.

Não obstante a reversão das medidas austeritárias servir de mote comum ao entendimento, rapidamente ficaram plasmados os bloqueios existentes, nomeadamente no que respeita aos ditames dos tratados europeus, ao rentismo parasitário do sistema financeiro e às leis laborais impostas pela troika [4]. Em nenhuma destas matérias o governo do PS demonstrou abertura para alterações estruturais negociadas à esquerda. 

 

2019: o fim dos acordos escritos

Chegados a 2019, o voto popular nas eleições legislativas definiu uma nova minoria à direita do PS, com o PSD (28%), o CDS-PP (4,2%), a Iniciativa Liberal (1,3%) [5] e o CHEGA (1,3%) [6] a somarem 86 mandatos. O Partido Socialista reforçou a sua posição com 36,3% e 108 mandatos,  o Bloco de Esquerda manteve os 19 mandatos, alcançando 9,5% e o PCP reduziu a sua expressão para 12 mandatos e  6,3% dos votos. Neste novo cenário, apenas o Bloco ou o PCP bastavam para o PS formar uma maioria de votos no parlamento. Uma vez cumprida uma parte significativa da agenda de devolução de rendimentos, o Bloco de Esquerda apresentou ao PS a sua disponibilidade para um novo acordo de legislatura, mas com uma pré-condição: a eliminação dos retrocessos introduzidos pela troika na legislação laboral (desvalorização do trabalho extraordinário, redução do número de dias de férias, redução da base de cálculo da indemnização por despedimento de 30 para 12 dias por cada ano de trabalho). 

O governo do PS rejeitou formalmente essa pré-condição e a possibilidade de  um novo acordo, apoiando-se na posição do PCP, que rejeitou a metodologia dos acordos escritos, afirmando a preferência pela simples negociação anual dos orçamentos. Três elementos ajudam a compreender esta recusa do PS para um novo entendimento. Em primeiro lugar, o alinhamento de António Costa com a tática Macron, apostando num centrismo que expurgue a esquerda de posições de poder na economia e nas relações do trabalho, apostando no discurso de chantagem sobre a ameaça do regresso da direita ao poder, instituindo o PS como partido charneira do regime.  Em segundo, a cedência à pressão organizada do campo patronal para a eternização das regras penalizadoras da troika nas leis laborais. A busca pela maioria absoluta, passo necessário para a um reposicionamento futuro do PS face à esquerda, é a terceira razão e a candeia estratégica de António Costa desde 2015. 

 

2020: a pandemia e as dificuldades estruturais

A pandemia da COVID-19 expôs as fragilidades e as desigualdades estruturais da economia e do Estado social em Portugal. Centenas de milhares de precários perderam os empregos na primeira vaga pandémica, sobretudo os que estavam submetidos a relações de informalidade ou dependentes da afluência do público, como as trabalhadoras domésticas, os trabalhadores da cultura e do turismo. A falta de habitação digna pôs em causa a salvaguarda da saúde pública de parte da população e dos trabalhadores migrantes. Os serviços públicos atingiram níveis de exigência inéditos. Em 2020, os índices de pobreza aumentaram 25% enquanto o número de milionários subiu 16%. Apesar do governo pôr em marcha um conjunto de medidas relevantes (layoff, apoios extraordinários, suspensão dos cortes de fornecimento de água e energia), Portugal ficou muito aquém da média europeia na resposta à crise, executando o equivalente a apenas 5,6% do PIB em respostas extraordinárias. 

A fraca resposta orçamental e o desnudar das desigualdades recolocou no centro do debate político as medidas defendidas pelo Bloco de Esquerda. O esforço a que o Serviço Nacional de Saúde foi submetido tornou evidente a falta de profissionais, desviados para o sector privado à conta de melhores remunerações. As leis laborais da troika facilitaram processos de despedimento coletivos em grandes empresas, alimentando um regime de precariedade. O buraco financeiro criado pelo Novo Banco [7] continuou a drenar dinheiros públicos. O Apoio Extraordinário ao Rendimento (AER) [8] deixou de fora milhares de trabalhadores. Em todos estes pontos, o governo do PS rejeitou as propostas do Bloco de Esquerda, que votou contra o Orçamento. A viabilização ficou a cargo dos votos favoráveis dos deputados do PS e das abstenções do PCP, PEV, PAN [9] e das deputadas não inscritas Cristiana Rodrigues [10] e Joacine Katar Moreira [11].

 

2021: o impasse à esquerda 

Chegados a 2021, o Partido Socialista não esmoreceu na tática de conter avanços à sua esquerda. A vitória de Marcelo Rebelo de Sousa, candidato presidencial conservador, beneficiou de uma conformação ao centro, com o apoio de Rui Rio (líder do PSD) e António Costa, que mobilizaram o grosso do eleitorado. A direção do PS quis uma vitória de Marcelo lida como um reforço da sua orientação ao centro. E teve essa vitória. Ao escolher navegar à vista, sem acordos escritos, António Costa pôde reforçar a sua escolha de ter os orçamentos aprovados à esquerda, enquanto todos os meses o PS votava no parlamento ao lado da direita em matérias essenciais.

Após umas eleições autárquicas, em setembro de 2021, em que o PS ensaiou, sem resultado [12], um discurso triunfalista assente na distribuição dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência, a proposta de Orçamento para 2022, apresentada em outubro, veio confirmar as escolhas ao centro e uma política de contenção orçamental. Rejeitando a margem conjuntural criada pela suspensão das regras do Tratado orçamental, o governo ficou aquém do necessário no que toca ao investimento, na resposta à crise energética, no combate às desigualdades e na valorização dos salários. Mas é sobretudo na saúde, nas pensões e nas leis do trabalho que se encontram os impasses à esquerda. 

O Bloco de Esquerda apresentou nove medidas para a negociação, todas rejeitadas na totalidade ou parcialmente em dimensões cruciais. Na saúde (dedicação plena [13], criação da carreira de Técnico Auxiliar de Saúde); nas pensões (revogação do fator de sustentabilidade e recálculo de pensões para eliminar os cortes em pensões de beneficiários com longas carreiras contributivas e profissões de desgaste rápido, valorização da idade pessoal de reforma) [14]; nas leis laborais (reposição das regras pré-troika nas horas extraordinárias, dias de férias, indemnizações por despedimento e contratação coletiva). Em praticamente todas as medidas, o Partido Socialista defendeu posições semelhantes enquanto estava na oposição. O PCP centrou as suas reivindicações na subida do salário mínimo, no aumento das pensões e no avanço das creches gratuitas. Pela primeira vez, incluiu as leis laborais nas negociações do orçamento do Estado. 

Desde a apresentação da proposta de Orçamento, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ameaçou publicamente os partidos com a dissolução da Assembleia da República em caso de chumbo da proposta, manobrando no interior do seu partido, o PSD, para reforçar a posição do novo candidato à liderança, Paulo Rangel. Sem justificação constitucional (a não aprovação do Orçamento não obriga à dissolução do parlamento), a ameaça de Marcelo beneficiou a tática de inflexibilidade negocial de António Costa, que assim pôde servir-se da crise política para voltar a apelar à maioria absoluta, mesmo sem excluir do seu discurso o regresso a entendimentos à esquerda, procurando pressionar o Bloco e o PCP nos dois tabuleiros.   

A proposta de Orçamento do Estado apresentada pelo governo de António Costa foi chumbada a 27 de outubro de 2021, obtendo apenas os votos dos deputados do PS e contando com a abstenção do PAN e das duas deputadas não inscritas. Marcelo Rebelo de Sousa anunciará esta semana as datas da dissolução do Parlamento e das eleições legislativas, que devem ter lugar em final de janeiro de 2022.    

 

2022: a esquerda bate-se pelo seu programa e mandato popular 

A convocação de eleições antecipadas ocorre em meio a um clima difuso de receio popular e pressão mediática sobre a esquerda. Tendo tornado claras as propostas negociais e a inflexibilidade negocial do governo, o Bloco de Esquerda não desiste de dialogar com os setores do povo de esquerda que se inclinavam para uma viabilização do Orçamento. A direita parte para estas eleições com três congressos marcados e dois processos de disputa interna (no PSD e no CDS), e passará a campanha a medir as palavras que dirá sobre futuras alianças com a extrema-direita do CHEGA. É muito pouco provável (e nenhuma sondagem o aponta) que esta direita possa alcançar uma maioria dos votos. Quanto à maioria absoluta do PS, ainda existe apenas nos cálculos de António Costa.  

As eleições não devem ser um ajuste de contas. Dar força ao Bloco de Esquerda é a chave para um novo impulso às negociações à esquerda, pelo que é essencial. 

 

Referências

1 O Partido Comunista Português apresenta-se, desde 1982, em todas as eleições partidárias sob a sigla da Coligação Democrática Unitária (CDU), na qual partilha a coligação com o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV). Ao contrário dos partidos verdes na Europa, o PEV não possui autonomia estratégica e funcional face ao PCP.

2 O Partido Socialista propunha, no seu programa eleitoral e em documentos públicos: criar uma figura jurídica que concedesse mais poder aos patrões nos processos de despedimento; garantir um congelamento das pensões; avançar com a redução da Taxa Social Única, paga pelos trabalhadores e patrões à Segurança Social.

3 Fruto da negociação entre o Bloco e o governo, o PREVPAP foi um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública, resultando na regularização e vinculação permanente  de milhares de contratos precários. A plataforma “Precários do Estado” foi lançada em Dezembro de 2016, com o objetivo de lutar pela integração de todos os trabalhadores precários do Estado, mobilizando diversos coletivos de combate à precariedade.

4 Entre 2011 e 2014, o governo de direita executou o plano da troika nas leis laborais: corte no número de feriados e dias de férias; redução do pagamento das horas extraordinárias; restrições à contratação coletiva; diminuição das indemnizações por despedimento; precarização laboral por via do trabalho temporário e do outsourcing.  

5 Partido ultraliberal, filiado ao ALDE. 

6 Partido protofascista, liderado por André Ventura (ex-dirigente do PSD), filiado ao ID.

7 Antigo “Banco Espírito Santo”, maior grupo económico do pós-25 de abril em Portugal, com uma desmedida influência política em todos os governos, que entrou em falência em 2014, resultando em um prejuízo de cerca de sete mil milhões de euros para o erário público.

8 Prestação destinada a quem perdeu rendimentos do trabalho ou o acesso às prestações sociais durante a pandemia. 

9 Partido animalista, filiado ao Animal Politics EU.

10 Ex-deputada do PAN, que rompeu com o partido.

11 Ex-deputada do LIVRE, que rompeu com o partido dirigido por Rui Tavares, filiado ao DiEM25.

12 Apesar de ser o partido mais votado, com o maior número de Câmaras Municipais, o PS perdeu a disputa na capital. Carlos Moedas, ex-ministro de Pedro Passos Coelho e um dos principais responsáveis pela aplicação dos planos de austeridade, venceu, por uma curta margem, o candidato socialista, Fernando Medina, tornando-se o novo presidente da Câmara Municipal de Lisboa.   

13 Regime que dota de recursos as administrações de saúde e permite a dedicação exclusiva e em horário completo ao Serviço Nacional de Saúde por parte dos profissionais.  

14 Para uma explicação sobre o factor de sustentabilidade e a proposta do Bloco de Esquerda para as pensões: Expresso | O fator de sustentabilidade, o Governo e a política razoável