Portugal: viragem à direita num contexto de instabilidade

Depois de uma noite de emoções instáveis, a coligação de direita, a Aliança Democrática, superou o Partido Socialista por uma pequena margem de 51 mil votos e apenas dois assentos parlamentares (antes de terem sido contados os votos para os quatro deputados dos círculos da Europa e Fora da Europa). O centro, o PS, perdeu meio milhão de votos (de 41,4% para 28,7%) após oito anos de governo e admitiu a derrota. A direita tradicional e conservadora, os liberais e a extrema-direita somam 135 dos 230 assentos parlamentares.

A extrema-direita foi catapultada de 12 para 46 assentos parlamentares (18%), sendo a grande beneficiária destas eleições. À esquerda, os resultados são contraditórios: a CDU perdeu dois dos seus seis deputados (3,3%), o Bloco de Esquerda aumentou ligeiramente a sua votação (de 4,4% para 4,5%), reelegendo os seus cinco deputados, e o Livre aumentou a sua representação de 1 para 4 deputados (3,3%). Globalmente, o centro e a esquerda obtiveram 40% dos votos, um dos resultados mais baixos em muitos anos, e a direita e a extrema-direita obtiveram 60% dos votos, com forte crescimento desta última. Estes resultados antecipam um governo instável e uma extrema-direita insuflada. Para a esquerda, os desafios são difíceis.

A derrota do PS e a crise social 

Para explicar a derrota do PS, é preciso resumir uma longa história. O Partido Socialista governa há nove anos, desde 2015. Nessa altura, Portugal estava a sair de um plano de austeridade devastador, imposto pela troika BCE, FMI e Comissão Europeia desde a crise da dívida de 2011. Apesar da grande oposição social a essas medidas empobrecedoras, a coligação de direita obteve mais votos e mandatos do que o PS em 2015, embora tenha perdido o controlo do Parlamento, dado o crescimento da esquerda, que compôs uma nova maioria parlamentar. Como consequência, o PS foi forçado a aceitar um plano de medidas antiausteridade imposto pela esquerda (Bloco de Esquerda e PCP) como condição para poder formar um governo minoritário com apoio parlamentar da esquerda. Durante os quatro anos seguintes (2015-2019), esta maioria, que foi chamada de “geringonça”, palavra inicialmente usada como um insulto, mas entretanto ressignificada, gerou esperança e tomou medidas sociais eficazes: os salários e as pensões foram aumentados e, apesar da feroz oposição da Comissão Europeia, o salário mínimo também; as privatizações foram interrompidas; os custos das famílias com transportes e educação públicos foram reduzidos e o acesso à energia para os mais pobres foi apoiado, entre outras medidas. Apesar do sucesso desta “geringonça”, no final dessa legislatura, em 2019, o PS tentou evitar as condições impostas pela esquerda e, nos dois anos seguintes, o governo de  Costa concentrou-se em preparar uma crise política que conduzisse a novas eleições, que vieram a acontecer em janeiro de 2022. O PS alcançou então o seu objetivo de maioria absoluta, elegendo 120 deputados com 41,4% dos votos .

A maioria absoluta, no entanto, tornou-se a causa da crise do PS. Durante a sua curta duração de menos de dois anos, o novo governo de António Costa esteve no centro de sucessivos escândalos, com ministros e secretários de Estado a demitirem-se a cada passo. Finalmente, demitiu-se o próprio primeiro-ministro, após um novo e possivelmente irrelevante processo judicial.

Embora a crise política fosse evidente, as principais dificuldades desse período de governo de maioria absoluta do PS foram geradas pela sua incapacidade de enfrentar os principais problemas sociais e, em alguns casos, até os agravou. Os casos da Escola pública (falta de professores e carreira docente), do Serviço Nacional de Saúde (mais de um milhão e meio de pessoas sem médico de família e crise nos cuidados hospitalares) e habitação são os principais exemplos. A habitação tornou-se um dos temas centrais do debate eleitoral a partir do momento em que o Bloco de Esquerda acusou o governo do PS de favorecer sucessivos aumentos de preços: Lisboa é hoje uma cidade mais cara para alugar uma casa do que Madrid ou Paris e os preços de aquisição são os terceiros mais caros do mundo, em função do rendimento. Isto é consequência de uma estratégia económica baseada no turismo, apoiada em baixos salários para baixas qualificações dos trabalhadores e também na atração de compradores estrangeiros ricos, apoiados em benefícios fiscais generosos, que fazem aumentar os preços para um nível inalcançável pela população. Em consequência, a disneylandificação das cidades impôs um êxodo geracional. À medida que estes problemas se acumulavam, as mobilizações sociais aumentaram, tendo havido grandes manifestações que reclamaram um plano público de habitação, o fim dos benefícios fiscais e o controlo dos preços e das taxas de juro. A derrota do PS, que perdeu meio milhão de votos, está relacionada com estes problemas sociais e com a contestação que geraram.

As mudanças no campo da direita

A principal coligação de direita, a AD, venceu por uma margem muito curta, embora a eleição tenha sido altamente participada (registou-se a menor taxa de abstenção desde 1995). Mesmo que estabeleça uma aliança parlamentar ou governamental com os liberais, a AD estará longe conseguir a maioria parlamentar. Na verdade, será um governo tipo comissão eleitoral: a preparar e a preparar-se para novas eleições antecipadas num ciclo político curto.

A principal razão para a incapacidade de a direita conseguir um governo estável, após o fracasso do anterior governo do PS, é a ascensão do Chega. No passado, essa ala da direita era representada por um partido xenófobo e conservador, o CDS, mas que, após entrar num governo e adotar posições pró-União Europeia, acabou por se diluir na direita tradicional, nunca tendo desenvolvido uma retórica tão tóxica como a do Chega, cujas relações internacionais são com Salvini, Le Pen e Abascal. É diretamente apoiado pela família Bolsonaro e representantes do Likud foram recebidos no seu congresso. Obteve uma fatia considerável do voto jovem, foi o mais escolhido na faixa dos 35 aos 54 anos e 60,5% dos seus eleitores são homens, segundo os dados das sondagens no dia das eleições.

Se havia uma cultura escondida de antigos apoiantes da ditadura portuguesa, todos eles reapareceram agora como entusiastas do Chega. No entanto, isto não é suficiente para explicar 18% e mais de um milhão de votos. Estes têm origem em motivações diversas: a crença no discurso de combate à corrupção, que é o principal tema do partido, e o ressentimento face às dificuldades sociais, num quadro de criação de medos, apontando os pobres e os muito pobres como os culpados pela sua pobreza e pela pobreza do país. Será que o Chega, com esta votação extraordinária, atingiu o seu máximo eleitoral? Não se sabe, dependerá da evolução da direita e da capacidade de mobilização social da esquerda. Em todo o caso, durante a campanha eleitoral, a AD afirmou claramente que não faria qualquer acordo com a extrema-direita e Montenegro  tenta agora chantagear o Chega, exigindo o seu apoio parlamentar sem condições. É, pois, já certo que haverá uma disputa feroz entre a direita e a extrema-direita pela hegemonia e o resultado é difícil de antecipar.

O que entretanto é claro é que há setores da burguesia a financiar e a apoiar a extrema-direita, procurando favores, o que tem sido uma ferramenta usada para proteger os seus interesses económicos e políticos  . O seu receio de uma solução de esquerda foi claramente visível na violenta campanha feita contra Mariana Mortágua, a líder do Bloco de Esquerda, temida pela sua possível influência na definição de políticas fiscais futuras sobre fortunas e heranças, ou sobre o imobiliário.

Os recuos do centro e da esquerda

Uma nota final sobre os recuos do centro e da esquerda. O centro, o PS, pagou um preço elevado pelos últimos dois anos de governo, tendo, de facto, prejudicado a sua credibilidade como alternativa. Com uma maioria absoluta parlamentar entre 2022-2024, dependia apenas de si próprio, mas os sucessivos escândalos, mais os problemas sociais que gerou e/ou agravou implicaram a perda de uma parte do apoio que tinham. Ainda assim, o PS manteve grande parte dos votos dos mais velhos, que temem os cortes nas pensões que foram impostos pelo anterior governo de direita.

O Bloco de Esquerda teve uma campanha enérgica e aumentou os seus votos (mais 34 mil votos, de 4,4% para 4,5%), reelegendo os seus cinco deputados. As sondagens de boca de urna indicam que 62% do voto do Bloco de Esquerda é feminino, de pessoas na faixa etária dos trinta e quarenta, na sua maioria com ensino secundário ou universitário. Entre quem tem mais de 65 anos, o Bloco obteve apenas 12% dos seus votos.

O Partido Comunista perdeu dois mandatos nas suas fortalezas tradicionais, Setúbal e Beja, e, embora refutando o prognóstico de desaparecimento, diminuiu a sua votação em todo o país. O seu voto é mais masculino do que feminino e de pessoas mais velhas. Tal como o Bloco de Esquerda, o PCP, durante a campanha, anunciou que negociaria com o PS um acordo para um novo governo, desde que medidas sociais essenciais fizessem parte do compromisso. O Livre, membro dos Verdes Europeus, subiu de um para quatro deputados. Como é sabido, os Verdes são hoje uma constelação flutuante de partidos com políticas pró-mercado, aliados da social-democracia e dos liberais no governo da Alemanha e de partidos de direita noutros países.

No futuro imediato, todos estes partidos farão parte da oposição parlamentar e social. As manifestações do 50.º aniversário da Revolução dos Cravos serão uma ocasião para a sua convergência e representarão um apelo simbólico à resistência e à recomposição da esquerda, um apelo para lutarem pelo presente e pelo futuro do povo. No quadro desta situação política instável, enfrentando novas crises e possivelmente novas eleições, os objetivos de derrotar a extrema-direita e mobilizar as forças populares para uma nova maioria social e política devem ser desafios comuns a toda a esquerda. Se o passado nos ensina alguma coisa, é certamente que a esquerda só cumpre o seu papel se ambicionar ter proposta política para todas as pessoas, jovens e velhos, gente de todas as condições e territórios, desempregados e migrantes, trabalhadores assalariados e trabalhadoras sem salário, gente com vidas precárias e marginalizada, e lutar pela agenda anticapitalista pelo respeito social, igualdade e liberdade.