Prazer, camaradas!

Começo este artigo com uma referência ao filme de José Filipe Costa (2019), a quem peço o título emprestado. O filme conta a história de Eduarda, João e Mick que, em 1975, vieram para Portugal trabalhar nas cooperativas entretanto fundadas nas herdades ocupadas. Fala-nos de uma revolução pouco conhecida que começava o seu curso – a revolução sexual e dos costumes – e que se desenhou também a partir do confronto entre uma mentalidade conservadora e incrustada e as experiências libertárias e libertadoras dos estrangeiros que, seduzidos pela Revolução, vieram para o nosso país. 

Assim éramos nós, um país atrasado e atávico, profundamente católico, mergulhado num turbilhão de esperança e com um caderno de encargos que ousava desafiar o tempo e se propunha recuperar décadas de atraso económico, político, social e cultural. Nesse tempo, falar de prazer era coisa inaudita e que fazia corar, porque o corpo se queria casto, o sexo marital e o desejo era coisa do Diabo. A sexualidade não era assunto porque o sexo existia para fins procriativos. E se, na penumbra, aos homens eram permitidos alguns devaneios, com as mulheres a censura moral era implacável. Era a moral do Estado, porque havia um outro país, desobediente, subversivo, progressista, que lia livros proibidos e ensaiava uma vida diferente, mas esta moral pública moldou-nos enquanto povo e manteve-se insidiosamente presente durante as décadas de democracia, sendo ainda hoje possível notar a sua presença, por desvanecida ou transformada que possa estar. 

Os ventos que sopravam

Quando pela Europa sopravam ventos da mudança, do soixante-huitardismo à segunda vaga feminista, Portugal vivia submerso na longa noite fascista.

“A libertação da mulher começa no ventre”, escrevia, em 1949, Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo[1], afirmando que a sexualidade estava no centro da emancipação das mulheres, rejeitando o corpo procriador e afirmando-o como território de descoberta, prazer e liberdade.

Michel Foucault publicava, em 1976, o primeiro volume da sua História da Sexualidade[2], no qual descrevia a sexualidade como um mecanismo de regulação dos corpos, dos comportamentos e da produção de subjetividades, formulando o conceito de dispositivo da sexualidade que caracterizava como biopoder, isto é, como uma rede de saberes e poderes de controlo dos corpos que produzia formas legítimas e ilegítimas de exercício da sexualidade.

Nos EUA, em 1976, foi publicado o subversivo Relatório Hite – Um profundo Estudo Sobre Sexualidade Feminina[3]. Até então, a sexualidade feminina era vista essencialmente como uma resposta à sexualidade masculina, mas Shere Hite rompeu todas as convenções e pensou, falou e escreveu com desassombro sobre sexualidade feminina. O relatório teve por base as respostas de mais de 3000 mulheres a 58 perguntas que versavam temas como o orgasmo – formas de o atingir, sensações que origina e centralidade na vida sexual -, a masturbação, o sexo oral e anal, as formas de viver a sexualidade nos vários estádios da vida, as relações heterossexuais, homossexuais e bissexuais, entre outros, e concluía que, afinal, a sexualidade feminina existia e a penetração vaginal não era assim tão importante para o prazer das mulheres. Uma ferida narcísica abria-se na sociedade falocrática, que, de repente, era confrontada não só com a existência de uma sexualidade feminina, mas também com a tomada da palavra pelas mulheres sobre prazer sexual. E, em discurso direto, as mulheres revelavam a sua insatisfação sexual.

Os direitos sexuais e reprodutivos

Desde 1967 que a Associação para o Planeamento da Família (APF), mesmo em condições adversas, trouxe para o debate sobre políticas públicas de saúde a questão da contraceção e do planeamento dos nascimentos. A pílula contracetiva foi introduzida em Portugal em 1967, apesar de a sua prescrição estar apenas autorizada para fins terapêuticos, e o DIU (dispositivo intrauterino) em 1971. Parecendo passos curtos, foram passos de gigante e ajudaram a preparar o salto seguinte.

Uma das conquistas da democracia foi, precisamente, a inscrição do planeamento familiar no texto constitucional. Mais do que um direito abstrato, significou o início da mudança de paradigma, como o revelam os debates da Constituinte. Apesar de todas as forças políticas representadas na Constituinte serem favoráveis ao planeamento familiar, discordaram vivamente do papel a desempenhar pelo Estado: de um lado os partidos de direita que o entendiam como direito abstrato, do outro lado a esquerda parlamentar que não se satisfazia com a consagração do direito, exigindo investimento e políticas públicas que o tornassem efetivo. A 25 de abril de 1976, a Constituição aprovada, na alínea d) do artigo 67, instituía: “O Estado reconhece a constituição da família e assegura a sua proteção, incumbindo-lhe, designadamente: (…) d) Promover, pelos meios necessários, a divulgação dos métodos de planeamento familiar e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma paternidade consciente”. Vencida a batalha da Constituição, durante o VI Governo Provisório, a 24 de março de 1976, foi aprovada legislação sobre planeamento familiar que o tornaram uma valência dos centros de saúde. A APF e outros grupos e coletivos passaram assim a organizar sessões e a responder às inúmeras solicitações de divulgação do planeamento familiar em bairros, escolas, empresas, etc. 

A divulgação e a disponibilização de métodos contracetivos permitiram uma verdadeira revolução que mexeu com os costumes. As mulheres puderam, finalmente, controlar os seus ciclos reprodutivos e, por essa via, reapropriar-se do seu corpo, agora como território de prazer, sem o medo nem a sombra de uma gravidez indesejada.

Todavia, apesar de o texto constitucional ter dado um sinal de mudança de paradigma, no restante ordenamento jurídico as transformações foram tíbias. A sexualidade desligava-se da reprodução, mas o direito de planear as gravidezes estava incompleto, porque o aborto não era permitido. O planeamento familiar e a contraceção foram, aliás, usados como argumento para combater a proposta de descriminalização do aborto. No coro das direitas e do conservadorismo entoava-se que só engravida quem quer, uma vez que há meios para prevenir as gravidezes indesejadas, numa espécie de revanche pelas liberdades alcançadas, que eram entendidas como libertinagem e até fraqueza moral.

O Movimento de Libertação da Mulheres (MLM), em maio de 1974, reclamou publicamente o direito ao aborto a pedido da mulher. Em 1979, a Campanha Nacional pelo Aborto e Contraceção (CNAC) redigiu um projeto de lei que propunha que o aborto fosse permitido, mediante declaração expressa da mulher grávida, nas primeiras 12 semanas de gravidez. Foram várias as iniciativas – debates, livros, publicações, depoimentos… – que reclamaram o direito ao aborto a pedido da mulher, mas a democracia foi surda durante 33 anos ao apelo do movimento social e da esquerda extraparlamentar. 

Em 1980, o parlamento discutiu o aborto pela primeira vez, mas apenas em 1984 legislou sobre ele. A primeira lei do aborto descriminalizou-o em três situações – crime contra a autodeterminação sexual (violação), perigo de saúde para a mulher grávida (terapêutico) e malformação fetal (eugénico), mas só em 2007, depois de dois referendos, vários julgamentos e dezenas de mulheres mortas na sequência de abortos clandestinos, o ordenamento jurídico reconheceu verdadeiramente o direito ao aborto, permitindo-o a pedido da mulher, até às 10 semanas. Num país em que os serviços públicos de saúde estão em colapso, esta é uma lei manifestamente insuficiente, atravessada por preconceitos vários contra as mulheres, que não responde às necessidades do país real e que precisa de ser melhorada, mas ela é, ainda assim, o resultado de décadas de luta para que o direito a dispor do próprio corpo e o direito ao prazer fossem reconhecidos e protegidos e a maternidade fosse entendida como uma escolha e não como um destino.

Do corpo público ao puritanismo 

Em 2018, uma carta assinada por uma centena de mulheres em França acusava de puritanismo e misandria uma campanha norte-americana contra o assédio sexual em Hollywood após o escândalo com Harvey Weinstein. “Defendemos o direito à liberdade de importunar, algo que é vital para a liberdade sexual” lia-se no documento. O debate foi aceso e extremado, mas teve a importância de romper com uma espécie de consenso preguiçoso que se vinha impondo em torno da vaga MeToo. Não subscrevendo o Manifesto das 100, acho, contudo, que ele teve essa importância vital, a de nos obrigar a pensar criticamente.

Nesse exercício, creio ser importante retomar uma ideia fundadora: o feminismo não é um movimento contra os homens, é um movimento contra o patriarcado. Se o esquecermos, facilmente escorregamos na rasteira liberal de nos satisfazermos com uma justiça que ataca os indivíduos e não as estruturas, os sinais e não as causas. Isto não significa desvalorizar as denúncias, pelo contrário, sem elas o assédio sexual continuaria a ser percebido como uma violência individual e não como uma violência machista, estrutural, de que muitas mulheres são vítimas pelo simples facto de serem mulheres e de o seu corpo ser percebido como corpo público, mas deve implicar também perceber que Weinstein e os seus semelhantes são o sintoma, não são a doença. Por isso creio ser importante discutir aquilo que tem sido a ação de uma parte do movimento feminista e perceber onde nos está a levar, em nome de quê e com que resultados. 

Entendo a natureza do MeToo como resultado de um vazio institucional, sobretudo de uma justiça machista que não acolhe as mulheres, que nos discrimina e humilha e se transforma a uma velocidade que nos insulta. A denúncia como arma e ação políticas é, no entanto, perigosa e enfrenta, em meu entender, dois problemas principais: torna o feminismo um movimento com um horizonte político curto, pouco ambicioso e residualmente transformador, porque se centra no ataque a indivíduos e não às estruturas que geram e favorecem as desigualdades e as violências, e, pela sua ação, justiceiro, sendo, por isso, tantas vezes percebido e representado como uma espécie de novo macarthismo. 

Desta cultura surge a aproximação ao punitivismo, tão presente numa parte do movimento feminista. A vertigem em identificar e tipificar comportamentos e classificá-los como recomendáveis ou censuráveis transforma o que devia ser um território de liberdade, descoberta e negociação num colete de forças. Daqui resulta uma sexualidade normativa, recheada de interditos, um corpo aprisionado num colete de forças e uma experiência de vida marcada pelo medo e pelo temor. Muitas das lutas feministas de segunda vaga consistiram, precisamente, em mobilizações contra essa ideia de sexualidade bem-comportada e procuraram libertar-nos do policiamento dos nossos corpos. O Estado fora da nossa cama foi uma reivindicação pelo direito ao prazer e à autodeterminação dos corpos. O que vemos, atualmente, é, assim, uma espécie de inversão perversa, no sentido em que mudam os interditos, mas se mantém a lógica de policiamento.

O nosso corpo é a única realidade que podemos verdadeiramente reclamar como nossa. E se, durante muito tempo, o corpo das mulheres foi um corpo público, no sentido em que o Estado, as instituições e os indivíduos se sentiam autorizados a falar, a agir e a legislar sobre ele, como se as mulheres não existissem e não fossem soberanas sobre ele, o feminismo resgatou-o, reclamou-o como propriedade privada de cada uma de nós e impôs sobre ele uma única regra: meu corpo, minhas regras. Qualquer subversão deste princípio é, pois, em meu entender, um recuo e, por isso, considero que as tentativas de normativização através de códigos de boas condutas e comportamentos, de lícitos e ilícitos, são uma deriva perversa e puritana. Vale a pena retomar o conceito de biopoder de Foucault, para, em exercício crítico, percebermos que este movimento de normativização está também ele a produzir formas legítimas e ilegítimas de exercício da sexualidade, reproduzindo os mecanismos do patriarcado e aprisionando de novo o corpo.

Termino retomando o título deste artigo para dizer: o prazer, camaradas, reclama um corpo libertado, um corpo que se nutre de curiosidade e procura realizar-se; o prazer, camaradas, é o conceito que temos de retomar, para resistirmos à vaga puritana e catequista que nos está a tentar impor uma nova sexualidade bem-comportada. 

O Eduardo Galeano, em As Palavras Andantes, escreveu: “A Igreja diz: O corpo é uma culpa. A ciência diz: O corpo é uma máquina. A publicidade diz: O corpo é um negócio. O corpo diz: Eu sou uma festa”. Ouçamos o corpo, porque ele é sábio.


[1] A primeira edição em português é de 1975.

[2] A primeira edição em português é de 1994.

[3] A primeira edição em português é de 1979.