O nacionalismo de esquerda é o futuro da esquerda na Europa? Para além do sucesso pontual de uma ou outra corrente nos seus contextos, demonstramos uma política gasta e que se afasta dos princípios da luta de classes
Pode dizer-se da esquerda anticapitalista – em defesa do seu bom nome – que procura sempre adaptar-se e agir perante uma análise objetiva da realidade concreta. No entanto, essa sua definição histórica levou a que em vários casos se formassem as premissas como resposta à conclusão na procura de uma justificação válida para a sua ação. Não é menos assim no caso do nacionalismo de esquerda, cuja popularidade, como os ciclos do capitalismo, sobe e desce.
Uma historiografia dessa corrente de pensamento não cabe aqui, mas agradece-se espaço suficiente ao editor para se expôrem as principais contradições em volta desta ideia. Primeiro, uma nota histórica. Como com todas as ideias, existem as mais variadas análises e utilizações do nacionalismo, tanto à esquerda como à direita, algumas com o seu mérito. A questão nacional tanto serviu para fortalecer a dominação das classes dominantes na organização dos regimes fascistas como foi pelas classes dominantes traída, por exemplo, quando Thiers deixou o exército prussiano entrar em Paris porque a verdadeira ameaça aos seus interesses estava na Comuna. Da mesma forma, tanto serviu a Lenine para garantir a autonomia ucraniana como a Estaline para criar uma mitologia supremacista que ainda hoje tem repercussões.
Dito isto, o interesse precisamente da análise da realidade é enquadrar a discussão no seu próprio tempo. Nessa senda, não se pode deixar de reparar que o nacionalismo de esquerda no ocidente tem dois processos concretos que o marcam e que o demarcam temporalmente. O primeiro é a implosão da União Soviética. O fim de um paradigma que significa uma crise de valores e análise para os tradicionais Partidos Comunistas: o fechamento de uns, a abertura de outros e a diluição de alguns. O segundo é a globalização, um processo de décadas que altera estruturalmente o funcionamento dos mercados e das suas escalas, acompanhado da financeirização da economia e da liberalização do movimento de capital.
A nova vaga de nacionalismo de esquerda surge precisamente como resistência à globalização. Não só porque vê na crescente precarização e desindustrialização das sociedades capitalistas avançadas uma ameaça ao tradicional sujeito político das suas lutas, mas também porque percebe que as instituições supranacionais ameaçam a democracia e a sua capacidade de disputar a relação de forças. Até aí estamos de acordo.
Mas veja-se como premissas iguais dão conclusões diferentes: o nacionalismo de esquerda insiste em tentar conservar as caraterísticas de um capitalismo que já não existe e serve-se precisamente da identidade nacional na procura de reconstruir as grandes lutas nacionais. Isto é como quem diz: “fragmentaram o proletariado, mas ainda conseguimos manter uma identidade coesa e maioritária” (é essa a grande sedução do nacionalismo e já lá iremos aos seus pecados). Uma outra esquerda percebe que a luta no mundo globalizado mudou, e insiste numa alterglobalização, uma luta internacionalista que estava destinada a falhar mas cuja grande vitória é o paradigma que institui, e que revemos nas duas últimas décadas no MayDay, no movimento das praças, na greve feminista internacional, nas greves climáticas, no Black Lives Matter e no movimento de solidariedade com o genocídio em Gaza. As vitórias não foram poucas.
Essa esquerda não põe de lado as lutas concretas nacionais mas antes assume um novo paradigma, uma nova luta internacionalista que questiona precisamente as instituições supranacionais em vez de se refugiar na questão nacional para desculpar as suas próprias incapacidades. Há conquistas no plano nacional, mas essas conquistas não existem fora de uma relação de forças mais abrangente internacionalmente. Devemos sair da NATO, mas não nos iludimos e sabemos que as bombas continuarão a cair e que os movimentos pela paz e contra o escalamento das guerras serão a pedra angular da política de esquerda anticapitalista nas próximas décadas. Movimentos internacionais e internacionalistas sempre foram aqueles que conseguiram vitórias contra o belicismo, no Vietname como em Timor.
Qual é o nosso sujeito político?
Avancemos. O pecado mortal do nacionalismo de esquerda vem da confusão entre os seus sujeitos políticos. Tão preocupada está essa política com a reconstituição de uma maioria para disputar, que se esquece de si própria. E o exemplo caricato é mesmo Sahra Wagenknecht, tão preocupada em disputar a maioria, que transforma o Mittelstand (o bloco de médias empresas alemãs) em sujeito político contra as grandes empresas, esquecendo-se certamente de como funciona o mercado capitalista e a acumulação de capitais, bem como dos interesses que realmente estão por detrás das médias empresas.
Aí está uma caraterística fundamental do nacionalismo fascista que se dá à mostra em algum nacionalismo de esquerda, porventura o mais selvagem. Ao encontrar outro sujeito político, abdica de uma política de classe para obter no corporativismo e na aliança entre patrões e trabalhadores a defesa da sua pátria.
É o adeus ao proletariado que segue o rasto da economia neoliberal. E mais curioso ainda é que essa mesma política ressurja como uma crítica à esquerda “identitária”, para quem – dizem – os trabalhadores já não importam.
Ora, veja-se a diferença: há uma análise de esquerda que reconhece as contradições da classe trabalhadora, os antagonismos internos à própria classe, que derivam de outras estruturas de desigualdade e que definem desigualdades de poder – até económico – entre diferentes grupos da classe operária; uma análise que constrói (ou vai tentando construir, que o caminho faz-se caminhando) uma política anticapitalista para todos, que não deixe ninguém para trás.
Uma outra análise já tem a conclusão estabelecida, e portanto constrói as premissas à sua medida: martela a classe trabalhadora num padrão uniformizado e aproveita-se da questão nacional para fazer separar as partes de que não gosta. Afinal, o que é a política de Sahra Wagenknecht senão a divisão da classe trabalhadora em si mesma: trabalhadores nacionais para um lado, imigrantes para o outro. Uns filhos da pátria que merecem proteção, outros degenerados e sem direitos. E mais, voltamos à aliança com os patrões, porque essa política diz: “desamiguem-se dos trabalhadores imigrantes, os vossos irmãos contra os estrangeiros e contra os excessos do capitalismo são os médios empresários”. Para uma esquerda que levanta como bandeira a prioridade da luta de classes, é um método enigmático.
É preciso voltar atrás e reafirmar um ponto: a tinta com que a história é escrita é cinza e, portanto, caminhamos sempre no fio da navalha. As lutas de libertação usaram a questão nacional como pilar fundamental da sua luta e ninguém as pode desdizer. Seria igualmente absurdo dizer que quem resiste em Gaza ou na Ucrânia não tem como bandeira essa mesma questão. E por isso, a crítica do nacionalismo de esquerda não é mais do que a crítica a uma política de divisão. Porque o anti-colonialismo concebe a questão nacional como política de libertação, não de exclusão.
E já agora, não se fica por aí. Num discurso proferido num seminário de quadros do PAIGC, que mais tarde foi publicado com o título Resistência Política, Amílcar Cabral lembrava: “unidade nacional, sim, mas contra todos os traidores, contra todos os oportunistas, contra todos os imorais”, e acrescentava que “fazemos a unidade nacional com um objetivo certo: combater o inimigo, lutar contra o inimigo, mas ao mesmo tempo lutar contra todos os fatores negativos do nosso meio”. Libertação contra o Estado colonialista, mas também contra o sistema explorador em si.
Nesse ponto podemos dizer que a política de Sahra Wagenknecht é conservadora. É um movimento de resistência à globalização e às transformações culturais, e para isso serve-se de uma coligação de trabalhadores e patrões sobretudo contra os trabalhadores imigrantes. Não é o recentramento dos trabalhadores no plano da luta social, é o aproveitamento da cada vez mais fraturante questão nacional.
Reflexões sobre Portugal
Em Portugal, não se faz o desfavor de colocar as correntes que reivindicam o nacionalismo de esquerda, sobretudo dentro e à volta do Partido Comunista Português, no mesmo nível infeliz em que colocamos a discussão alemã. Tentemos antes perceber as suas razões.
O lugar de Portugal na relação de forças internacional é absolutamente inexistente. Mesmo dentro dos países periféricos da União Europeia, estamos à beira mar plantados sem ter grande coisa a dizer. A perda de soberania para as estruturas supranacionais, sejam elas o Banco Central Europeu ou a própria União, qualificam-se como obstáculos a uma política anticapitalista. Essa análise é tão transparente como a água e é partilhada. Mas será o nacionalismo de esquerda a solução?
Os argumentos já foram dados. Como estratégia, falha por considerar o refúgio nacional como solução. Mesmo fora da UE, Portugal estaria enquadrado num contexto internacional dominado pelas potências ocidentais e sob pressão dos mercados e da movimentação de capitais internacional (alguém acredita que seria possível a desdolarização?). Ou a situação internacional vira à esquerda – e, diga-se, não parece dirigida para aí – ou não há rutura com o capitalismo para ninguém. E a lição que os movimentos internacionais nos deram desde o virar do século é precisamente essa.
Como tática, corre o risco de cair na armadilha alemã. Mesmo que não caia, é duvidosa a sua eficácia e a sua direção. Para onde vai? “Preparar as massas trabalhadoras” tornou-se sinónimo de as entrincheirar contra si mesmas? Aproveita a questão nacional para construir uma maioria corporativista? A política para os “trabalhadores nacionais” é também usada pela extrema-direita para virar trabalhadores contra trabalhadores.
Se é simplesmente uma função retórica que usa a bandeira ou o hino para aproximar trabalhadores, não o queremos. A nossa pátria não tem delimitações geográficas, mas antes uma única fronteira entre quem explora e quem é explorado. E do lado de cá, temos a certeza de que a luta e o caminho para a libertação não precisam de ir beber do outro lado.