A crise da habitação mantém-se uma das principais preocupações dos portugueses. Embora muitas das suas consequências se deem de modo semelhante para o universo de pessoas abrangidas pelo problema, importa assinalar que este universo não é homogéneo. Essa diversidade de sujeitos e experiências faz com que os impactos a sentir sejam movidos de acordo com essas diferenças. Trata-se de questões de classe, etnia, género, idade, …
Neste artigo falo de jovens estudantes (tampouco um grupo homogéneo) que sofrem uma crise de alojamento estudantil sem precedentes. De acordo com o Observatório do Alojamento Estudantil, o preço do alojamento para estudantes subiu 10,5% no último ano. Nem é necessário descrever a situação nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, sendo o seu cenário desesperante já parte do imaginário coletivo. Ora, o mesmo dá sinais de si no resto do país.
O Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior (PNAES) anuncia novas camas para os estudantes, mas estas provam-se constantemente insuficientes. Naturalmente, sobre um mercado com preços cada vez mais insustentáveis das residências de luxo e dos quartos a 300 e 400€ (fora de Lisboa e do Porto). As residências, cuja construção vai sendo prometida, tardam em ganhar forma, assim como o reaproveitamento de edifícios públicos ou devolutos. Ser-se estudante deslocado torna-se praticamente impossível e viver da tão famosa “massa e atum” transfigura-se de piada a realidade.
Em Coimbra, são conhecidas as “repúblicas” – casas comunitárias de habitação estudantil, que constituem espaços de convívio e formas de autogestão. Nelas, preço do aluguer é substancialmente mais baixo do que o valor médio de um quarto em Coimbra, que ronda os 300€. Em cada uma, costumam habitar em média cerca de 10 estudantes, sem contar com a presença dos “comensais” que, embora lá não residam, partilham as refeições. Embora exista muita diversidade de repúblicas, o ambiente que se encontra é, regra geral, de solidariedade e fraternidade, e bastante politizada, tradição que advém da crise académica de 69. Ora, será esta uma alternativa viável, dado o paradigma dominante da habitação?
Efetivamente, o comunitarismo poderia ser a solução para muitos males, fortalecendo sentimentos de revolta contra o estado atual do sistema político e económico, gerando laços passíveis de movimentos alternativos como se verifica, por exemplo, em eventos de alternativa à praxe dirigidos por vários “repúblicos”. No entanto, sendo a união e comunidade fortes ameaças a uma estrutura que nos quer atómicos e desagregados, facilitando assim o alheamento geral da realidade socio-política que nos rodeia, também as repúblicas se vão tornando vítimas desses mesmos objetivos, funcionando por vezes de forma aos interesses do coletivo.
As repúblicas de Coimbra encontram-se, teoricamente, protegidas pelo Estado devido ao reconhecimento do valor patrimonial que este lhes concedeu. Porém, têm sido continuamente alvo de falta de investimento e proteção por parte dos órgãos locais. Recuemos a 2015 para recordar o despejo da “República da Praça”, fruto do Novo Regime do Arrendamento Urbano que, à data, não contemplava as salvaguardas necessárias para contrariar a supremacia do interesse imobiliário selvagem e especulativo. Recentemente, a “República dos Fantasmas” e a “Real República Rapó-Taxo” viram-se no imbróglio de, num espaço de 3 meses, se virem obrigadas a adquirir as próprias casas num valor de 450 mil euros, sob pena de despejo. Foi necessária muita contestação e indignação para que a Câmara cedesse, levando à consequente criação de um regulamento que permitisse o apoio financeiro às repúblicas no caso de aquisição de imóveis.
A ideia de que ser estudante é uma etapa transitória para a vida adulta cada vez mais se afigura desadequada, assim como a espectativa de um futuro estável e tangível. A crescente tendência de individualização, advinda de um sistema económico, social e político capitalista que promove isso mesmo, acaba por prolongar o estatuto de “jovem”, tornando longínqua a condição de “adulto”. Para que se dê uma verdadeira rotura no cenário atual, não apenas a nível do alojamento estudantil, mas sim de toda a crise habitacional, é crucial que se fortaleçam os laços comunitários. Do mesmo modo que a cidade de Coimbra é conhecida por servir os estudantes (bem ou mal, será outra questão), qualquer cidade deve, primeiro que tudo, servir as pessoas. Mas se é através da criação de condições para um espaço público de qualidade que se pode consolidar o espírito comunitário, como pode ele existir se o próprio sistema o repela?
Recorramos aos sentimentos de injustiça e indignação, cada vez mais presentes entre indivíduos e experiências tão diferentes. É a revolta que neles existe em comum que pode servir de verdadeiro pilar para aquela que se averigua uma comunidade fraterna e forte, finalmente capaz de enfrentar quem a deseja fragmentada, isolada e, principalmente, sem tecto.