Este não é um texto sobre a crise de habitação, que espelhe o drama quotidiano da ampla maioria da população que vê negado o seu direito a uma casa digna, e que o projeto neoliberal insiste em ignorar ou empurrar para debaixo do tapete, substituindo o direito constitucional à habitação pelo direito ao lucro rentista especulativo, “o tal do gostinho especial, gosto a limão, gosto a cereja, gosto a opressão numa bandeja” (*Sérgio Godinho (1974), O Grande Capital). Tampouco é sobre as políticas públicas de habitação – ou a falta delas – apresentadas pela maioria absoluta socialista, que não resolverão os problemas decorrentes desta crise, já que perpetuam a especulação imobiliária, não tocam no poder instalado do sector bancário, mantêm e trazem novos benefícios fiscais para senhorios, residentes não habituais, nómadas digitais e fundos imobiliários abutres.
É antes um texto sobre o potencial transformador do movimento social pelo direito à habitação e à cidade. A 1 de Abril deste ano, a grande manifestação organizada pela plataforma Casa para Viver, cujo manifesto foi subscrito por 121 associações e coletivos, juntou nas ruas dezenas de milhares de pessoas e concretizou o potencial agregador de uma luta popular abrangente. A mobilização de massas a que assistimos não foi apenas conseguida pelo contexto de crise vivido, mas também por uma cultura política que não excluiu nenhuma luta: controlo de rendas; fim dos despejos sem alternativa digna; regulação das prestações ao banco; alojamento estudantil verdadeiramente acessível; fim da guetização a que estão sujeitas as populações dos bairros periféricos das grandes cidades com uma correspondente reformulação dos planos de acesso aos centros urbanos; entre muitas outras. Numa frente ampla e unida gritámos por todas as lutas, pelo feminismo, pelo antirracismo, pela luta estudantil, pelo direito a um salário digno, pelo fim da precariedade – em todas as formas em que a encontramos – pelo anticapitalismo.
Cabe agora à esquerda o desafio de consolidação deste movimento abrangente. É neste desafio que ainda reside o maior problema político do movimento social que luta por uma casa digna. A luta pela habitação não costuma ser vista como uma luta coletiva. Expressões que nos são incutidas como “a casa é minha”, “a minha propriedade”, ou “se não a consigo pagar ou sou despejada, a culpa é minha”, traduzem, na maioria das circunstâncias, um sentimento individual. Os problemas habitacionais não são uma novidade para uma grande parte das pessoas, já exaustas, e apesar de serem específicos a cada situação, resultam nas mesmas dificuldades, que passam por não conseguir pagar uma renda ou uma prestação vendo-se obrigadas a voltar à casa dos pais, a partilhar casa com desconhecidos, ou a serem empurradas para fora das cidades. Estas situações tendem, então, a ser vividas como um falhanço individual que é muitas vezes escondido, por vergonha. Temos de quebrar a dinâmica desta narrativa, tão característica do neoliberalismo, onde o indivíduo é tudo o que importa, onde tudo se explica por mérito ou demérito próprio. A manifestação de 1 de Abril mostrou a capacidade que a luta popular pelo direito à habitação e à cidade tem em considerar todos estes problemas específicos, mas numa perspectiva unitária. E a 30 de Setembro, graças ao trabalho militante de organização e construção de um processo unitário e de ligação entre diversos sectores – trabalho este que deverá continuar com a mesma força – voltaremos a trazer para o debate público uma nova narrativa que melhor espelha a realidade e que engloba todas estas lutas numa luta colectiva, com o objectivo de alterar a maneira como deve ser vista uma casa: como um direito. Ter uma casa, um teto, um lugar seguro, não pode continuar a ser uma sorte, ou um luxo e, acima de tudo, não pode continuar a consumir a maior parte do rendimento disponível das famílias. De acordo com um estudo realizado pela Century 21, em Julho de 2023, “em Portugal, a taxa de esforço para arrendar ultrapassa os 53% nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (…) em 2022”, e “em Lisboa, a compra de casa exige uma taxa de esforço de 67%, e no Porto de 50%” (* Century 21 Portugal (2023), Acessibilidade à Habitação em Portugal, 2ª edição). É esta a dura realidade, pelo que é premente e urgente fazermos uma luta abrangente e unitária pelo direito à habitação. É o paradigma que queremos alterar. Não se trata aqui de pensar ou resolver cada problema separadamente, com soluções técnicas isoladas, trazendo remendos que na maioria dos casos apenas aliviam, se tanto, os sintomas, mas ignoram as causas do problema. Trata-se, sim, de dar força a um movimento que se insurge para que a habitação seja um direito básico, de facto, garantido.
Este não é um texto sobre a crise de habitação, nem sobre a inexistência de políticas públicas que a combatam. Mas é nesta crise que vivemos. Voltemos, então, a tomar as ruas no dia 30 de Setembro.