No final dos anos 90, Portugal deparava-se com uma epidemia social relacionada com o crescente uso de drogas ditas “pesadas”, especialmente a heroína, que se viera a agudizar durante as duas décadas anteriores. As mortes relacionadas com o consumo de drogas somavam-se às centenas ao ano; as taxas de infecção com VIH e hepatite, como resultado da partilha de seringas, eram das mais altas da Europa; as prisões enchiam-se de pessoas condenadas por ofensas relacionadas com o uso de drogas. A extensão da crise estava à vista: estima-se que perto de 1% da população fosse consumidora de heroína. Nas ruas, nos hospitais, nas prisões – as respostas sociais provavam-se desadequadas e insuficientes.
A implementação do Projecto VIDA em 1987 tinha sido a primeira tentativa de criação de uma política integrada que respondesse ao problema das drogas. Ao longo dos anos que lhe seguiram, o programa foi estabelecendo medidas de consciencialização, de intervenção para controlo da oferta, e de reabilitação social. Lentamente, foram-se erguendo centros de tratamento especializados, o tratamento dentro das prisões foi possibilitado, e o primeiro programa de troca de seringas e testagem do VIH iniciou-se em 1993. O progresso era lento, e a crise não mostrava sinais de abrandar. A criminalização do consumo de drogas começava agora a ser questionada mais abertamente, e a reivindicação por uma estratégia integrada e abrangente ia ganhando espaço dentro das instituições de representação políticas.
Em 1998, com o objectivo da criação de um relatório que guiasse as políticas públicas no âmbito do combate à toxicodependência, e em particular sobre questões de redução de riscos, tratamento e reinserção social, o governo nomeou a Comissão de Estratégia Nacional de Luta Contra A Droga. O relatório produzido apresentou várias recomendações sobre diferentes áreas de intervenção, incluindo a recomendação que a posse de drogas para uso pessoal fosse descriminalizada. Com a aprovação do conteúdo do relatório pelo Conselho de Ministros em 1999, surge assim a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, que se mantém como a base das políticas públicas sobre drogas em Portugal.
A pessoa consumidora de droga toxicodependente deixa então de ser tratada pelo estado como uma criminosa que merece ser punida, e passa a ser considerada um ou uma cidadã que precisa de apoio e cuidados especializados. A nível nacional, foi-se consolidando uma rede pública de serviços de apoio às pessoas toxicodependentes, como gabinetes de apoio, programas de substituição de heroína por metadona, equipas de rua e centros de acolhimento com técnicos especializados.
Atualmente, a descriminalização do consumo de drogas em Portugal e o programa de intervenção que a acompanham são reconhecidas internacionalmente como abordagens progressistas de grande sucesso no que toca a políticas de drogas. Ao transferir o foco das medidas punitivas para estratégias orientadas para a saúde pública, o consumo de drogas, particularmente de heroína, reduziu drasticamente. Da mesma forma, as mortes relacionadas com o consumo de drogas desceram cerca de 80%, e a transmissão de doenças como o VIH entre consumidores foi também minimizada substancialmente.
As políticas punitivistas de combate às drogas perpetuam desigualdades sociais, particularmente de classe. As penalizações resultantes da criminalização do consumo de drogas não só afetavam desproporcionalmente comunidades marginalizadas, como sujeitavam os membros dessas comunidades a novas formas de marginalização, perpetuando o ciclo de pobreza e de exclusão social. Ao proporcionar apoio e reabilitação àqueles que sofrem de dependências, a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga foi um passo exemplar para a quebra desse ciclo. Na construção de uma sociedade justa e equitativa, o papel da punição como forma de resolver problemas sociais mais abrangentes tem que ser questionado. Ao abraçarmos estratégias de saúde pública, de reabilitação, e de apoio social, o ciclo punitivista pode ser desafiado.