Reducionismo e negacionismo ou Ecossocialismo?

O ano de 2024 foi o mais quente de que há registo. Foi, consequentemente, atravessado por fenómenos climáticos extremos que, logo nas primeiras semanas de 2025, já demonstraram que não irão desaparecer de cena. Vejam-se os brutais incêndios que varreram Los Angeles, em pleno Inverno, enquanto Donald Trump assumia o controlo da Casa Branca: um presidente negacionista num mundo (e num país) em chamas. O paradoxo é evidente, alcançado a dissonância; se em 2024, o planeta ultrapassa pela primeira vez a barreira estipulada pelos Acordos de Paris – os 1,5ºC. de aumento de temperatura da atmosfera em relação ao período pré industrial –, logo Trump retira os EUA dos Acordos de Paris. O presidente neofascista não está demasiadamente preocupado em refutar a ciência pelo discurso, mas sim pelos atos. O risco é enorme e expressa a crise profunda que atravessa o capitalismo global, cujo desenvolvimento só se consegue dar pela destruição das suas próprias bases de sustentação – e, eventualmente, das da própria civilização humana. É este negacionismo, mais focado na voragem política e económica que na disputa dos factos, que nos devemos concentrar em combater. Contudo, para o fazermos eficazmente, convém livrar a esquerda de rémoras ideológicas que turvam a nossa visão e dispersam as nossas energias – porque também deste lado da barricada há reminiscências negacionistas.

É a complexidade, estúpido!

Procuremos então perceber o que é e de onde vem o negacionismo “de esquerda”. Focamo-nos, neste caso, no negacionismo climático, mas tentando elaborar um tipo de compreensão que se aplique também noutros terrenos.

Se sabemos que o negacionista das direitas reflete pressões materiais muito concretas – a necessidade e o interesse em alimentar ininterruptamente os lucros do capitalismo fóssil – o de esquerda parece nascer de processos mais subtis e menos evidentes. Não podemos excluir que, de forma mais indireta, também parte da esquerda talvez reflita pressões materiais que alimentam o negacionismo – também entre nós, o ser social determina a consciência. É, porém, mais produtivo, olhar para os vieses de análise que fomentam este erro. Assumir que o mundo se tem revelado cada vez mais complexo e, com ele, os desafios estratégicos à esquerda, talvez seja um primeiro passo para compreender as origens do negacionismo no nosso campo. No caso das lutas por justiça climática e ecológica, o desafio de combinar, na análise e na política, factores de ordem física, “natural”, com outros que são de ordem social, “humana” é talvez maior do que em qualquer outra frente de luta. Repare-se que esta mesma divisão, que opõe o “natural” ao “humana”, o chamado dualismo, é ela mesma muito problemática e, se usada incorretamente, capaz de sabotar qualquer pensamento crítico ecossocial. Parto da premissa que essa dificuldade é parte importante da explicação da subsistência da armadilha negacionista nas fileiras da esquerda.

As normas físicas que regem o mundo material são inegociáveis, pois não dependem da vontade dos indivíduos ou da sociedade. Contudo, a história e o desenvolvimento social (e a política como meio de neles intervir), ainda que vivam do terreno do humano, tampouco são alheios a normas e tendências objetivas, que extrapolam a vontade subjetiva de políticos, partidos e ativistas. Porém, as leis e normas objetivas que regem esses dois mundos são distintas, operam em graus de abstração diferentes e, por isso, são estudadas por ciências diferentes: a física, a química e a biologia, por um lado, a história e a sociologia, por outro. Como interagem estes dois mundos – o físico, que determina em primeira instância a ciência climática – e o social – a luta de classes, como lhe chamamos – é um problema complexo de deslindar.

Trump responde a esta complexidade com o aceleracionismo ultracapitalista e, nisto, é coerente. Há na esquerda quem responda ao problema com o reducionismo, o que desemboca em dois erros gémeos, aparentemente opostos, mas em tudo semelhantes: o negacionismo e o catastrofismo. Pode parecer que não, mas os ativistas que pretendem alcançar a justiça climática encerrando fábricas contra a vontade dos operários (tópico analisado no número anterior desta revista) ou o ex-autarca Demétrio Alves e a historiadora Raquel Varela (ambos de esquerda) que negam a ciência climática estão mais próximos uns dos outros do que poderia parecer.

Advogo, assim, que, na esquerda, o negacionismo climático pode ser visto como a consequência política do reducionismo na análise.

Reduzir e negar

O que é o reducionismo? É o erro de análise de quem, perante um objeto complexo, que emerge da combinação de diferentes elementos, de origens distintas, que, à partida, obedecem a leis diferentes, opta por isolar um elemento do todo, abstraindo-se dos restantes, ou mesmo negando-os. Assim, reduz-se um todo, sempre mais complexo do que a soma das partes que o compõem, a uma dessas partes – o que torna a análise mais fácil, mas também mais superficial, quando não mesmo equivocada.

Nas ciências ditas duras, existem longos debates em torno destes problemas. Stephen Jay Gould, paleontólogo e biólogo materialista dialético, abordou vários deles: a combinação de fatores sociais e culturais com os genéticos na formação de inteligência e personalidade humanas, por exemplo. Contra as tendências “biologistas” (mas também as “culturalistas”), duas formas de reducionismo, Gould propunha uma abordagem dialética que integrava os vários elementos, biológicos, culturais, históricos, ou do percurso individual de cada ser humano, para entender uma realidade complexa, a inteligência humana e a “personalidade”, que emergia da interação e integração desses vários elementos concretos. [Sobre este problema e vários outros assuntos fascinantes, ler, por exemplo, The science and humanism of Stephen Jay Gould, de Brett Clark e Richard York, ou The mismeasure of man, do próprio Gould.]

Além disso, o conceito de reducionismo não é alheio à análise política, em particular marxista. Grande parte das batalhas políticas na história do socialismo revolucionário podem ser vistas sob esta ótica. Mais recentemente, o tema premente da intersecção entre raça e classe foi discutido sobre este prisma por vários autores. [sobre o tema, ler o artigo “Race and Class Redutionism Today” de David I. Backer

Voltando ao tópico: é possível ver o negacionismo climático de algumas figuras de esquerda como consequência de um viés reducionista. Demétrio Alves, ex-autarca da CDU, aquando das cheias devastadoras em Valência, apressou-se a escrever que estas nada tinham que ver com as alterações climáticas, o problema seria a falta de planeamento urbano e o excesso de construção. Já há alguns anos, a historiadora Raquel Varela também assinou uma série de invectivas contra o consenso científico em torno das alterações climáticas e quem o defendia (invectivas essas que já tiveram respostas assertivas de Miguel Heleno e de Luís Leiria em dois artigos do esquerda.net). O argumento “forte” da historiadora é o de que setores importantes do capital se aproveitam da “suposta” (do ponto de vista de Varela) crise climática para receber subsídios públicos de forma a reconverter a indústria (automóvel, por exemplo), proceder a despedimentos e a diversas medidas que aumentam o nível de exploração dos trabalhadores, além de desviarem recursos públicos. Logo, segundo Raquel Varela, o “aquecimento global”, ou pelo menos a sua origem antropogenética, seria uma falácia ao serviço do “grande capital”.

De facto, como negar que a falta de planeamento urbano e a construção desenfreada, que se sobrepõem a cursos de água e impermeabilizam os solos, se refletiram na catástrofe de Valência? Ou que a indústria automóvel e os gigantes do combustível fóssil manipulam o conceito de transição climática para aumentarem os seus lucros de múltiplas formas (sem, sequer, com isto cortarem emissões)? O negacionismo de Alves, Varela e quejandos apoia-se assim em elementos não só verdadeiros, mas até incontornáveis – uma política por justiça climática que olvide o planeamento urbano ou o combate ao greenwashing será certamente coxa. O seu pecadilho é o reducionismo na análise que se transforma em negacionismo na política.

Para uma responder a uma crise complexa: Ecossocialismo

O negacionismo surge assim como a expressão política de um reducionismo na análise. Não poucas vezes, o problema radica na defesa do que é visto (erradamente) como a receita tradicional da política socialista – a defesa dos salários – em oposição a respostas a outras contradições do capitalismo. Algo como os “trabalhadores primeiro, o planeta depois”, depois decorado com argumentos ideológicos aparentemente mais sofisticados – o urbanismo, o greenwashing, etc.

Isso não nega que a dificuldade em conciliar as determinações físicas, climáticas e ecológicas e as sociais e políticas é real. E não gera apenas unilateralidades negacionistas. Do outro lado do espelho, encontramos males equivalentes. Entre o movimento por justiça climática, não por acaso, sobretudo entre os seus setores mais urbanos, assentes nas classes médias/altas e nas metrópoles ocidentais, há também um reducionismo. Entre parte do “movimento climático”, nos setores que se veem como “disruptivos”, a crise climática resume-se a uma racionalidade física, matemática: corte ou aumento de emissões, cumprimento ou não de metas científicas, assim é entendido o problema. Por esta via, os tempos, as táticas e a estratégia do combate climático são determinados em função de metas tecnocráticas – “acabar com os combustíveis fósseis até 2030”. Reduz-se a crise à física, abstrai-se o factor social (quem irá protagonizar a mudança, que classes, com que organizações, qual a sua consciência deste processo?), nega-se a política, inviabiliza-se a luta, garante-se a derrota. Assim, Alves, Varela e os bloqueadores de estrada e aspersores de tinta têm mais que ver uns com os outros do que suspeitam. Uns negam a física, outros a luta de classes, todos são reducionistas. Quiçá, a influência dos métodos e meios académicos, que tendem a isolar os elementos da realidade para os analisar separadamente de forma ultraespecializada e unilateral, prisioneiros da lógica formal, seja a explicação desta irmandade.

Não obstante, se estamos empenhados não tanto em criticar as falhas alheias, mas sobretudo em construir uma política e um movimento de massas que confrontem a crise ecossocial de uma perspetiva anticapitalista, seria mesquinho ficarmo-nos por aqui.

“Com o mal dos outros posso eu bem”, já dizia a minha avó, sugerindo que deixássemos aos outros os seus erros e nos preocupassemos com o que podemos fazer melhor. Talvez deva ser esse o foco de artigos como este de ora em diante – gastando menos tinta com os irrelevantes negacionistas de esquerda e mais, por exemplo, com os de extrema-direita. Mas, se alguma coisa de útil pode sair destas linhas, é o apelo a uma análise e uma política totais – holística como se diz hoje – no âmbito das justiça climática e da transformação ecossocial. Uma orientação que integre a ciência climática e a luta de classes, o combate por serviços públicos e pelos bens comuns, as determinações de género e de raça, entre tantos outros factores. Uma resposta programática que integre de forma coerente a luta contra a extração de lítio nas Covas do Barroso e a necessidade de uma transição energética real; os anseios anticapitalistas de uma vanguarda juvenil “climática” e a organização de classe dos trabalhadores da indústria fóssil; a denúncia da falsa transição verde feita pelo capital com uma política de planeamento ecológico; e tudo isto com a defesa dos serviços públicos, do trabalho com direitos, da luta contra as várias formas de opressão de género, raça ou outras. É mais complexo do que a redução, negacionista ou unilateralmente climática, da crise do capitalismo a uma superficialidade confortável. Mas é o que temos de fazer. Certamente, o Encontro Ecossocialista do Bloco de Esquerda, dia 22 de março em Almada, será um espaço privilegiado para essas reflexões – e para preparar a ação, pois não temos tempo a perder.