Reflexões sobre política unitária em tempo de crise

As transformações sociais e políticas têm uma forma imponente de voltar a trazer ao de cima e mastigar discussões antigas sobre estratégia e tática. Qualquer organização política que atravesse uma situação nacional de crise se vê obrigada a retornar a vários destes debates. Um dos mais antigos e de maior preocupação para a decadência dos regimes ocidentais e para a crise da esquerda é o da política unitária.

            Depois da derrota do primeiro referendo ao aborto, os debates em torno da crise que a esquerda enfrentava deram origem ao Bloco de Esquerda. É um bom exemplo do sucesso da política unitária, mas também há maus exemplos. Em Espanha, o impulso da política unitária tem levado a esquerda a um beco sem saída onde está presa entre a impotência ou a capitulação ao PSOE.

            Entre a tentação para o sectarismo, que resigna qualquer partido à impotência – tendência que não tem passado ao lado do Partido Comunista Português – e a tentação para o reformismo, que   tem como consequência a capitulação à hegemonia das potências ocidentais, há um caminho sinuoso de ação política, repleto de armadilhas e tensões, onde se encontrará uma via para vitórias à esquerda. Para encontrar esse caminho, não dispensamos de algumas reflexões sobre prática política.

Programa e estratégia

            Não há política unitária sem programa. Isto é, não há possibilidade de convergência política sem se discutir, em primeiro lugar, os objetivos concretos dessa convergência.  Em França, a Nova Frente Popular fez dele, e bem, o ponto angular da sua ação política. A construção de um programa à esquerda já vinha sendo ensaiada em França desde a NUPES e tem pilares fortes que, apesar de todas as disputas e tentações sectárias ou oportunistas dentro da NFP, têm conseguido manter a coligação unida.

             Mas esse programa depende dos objetivos das convergências e das organizações políticas e da forma como querem lá chegar. Se o objetivo dos partidos de esquerda é apenas combater a extrema-direita, o programa traduz-se numa política de redistribuição que reconquiste as massas descontentes – é o exemplo da NFP. Se o objetivo é reverter a política da troika, o programa é de reposição dos direitos atacados, como foi o caso da geringonça. Se o objetivo é alcançar o socialismo, será preciso um programa de transição que consiga transformar a sociedade. Se o objetivo é ganhar uma cidade à direita, só um programa que rejeite os princípios do neoliberalismo e aplique uma política transformadora para a habitação e o direito à cidade pode ser pilar comum.

            Mas é errado pensar num programa como o resultado de uma simples convergência voluntária e amigável. A geringonça não foi isso, nem o é a Nova Frente Popular. Nos espaços unitários disputam-se relações de forças entre organizações políticas com objetivos diferentes. Na NFP essas tensões traduzem-se nos desentendimentos entre os radicais insubmissos e os centristas socialistas, na geringonça a tensão foi entre o Partido Socialista maioritário, com um programa que não questiona o capitalismo, e o Bloco de Esquerda e o PCP, com programas distintos e combativos.

Relação de forças

            Em França, a Nova Frente Popular conseguiu unir-se por detrás de um programa radical porque a relação de forças no seu seio o permitiu: com a implosão do Partido Socialista Francês depois do governo de Hollande, a França Insubmissa conseguiu transformar-se na principal força da esquerda do espetro político e, dessa forma, impor os seus termos de negociação ao PSF, que se viu obrigado a aceitá-los (vejamos ainda se o feitiço não se vira contra o feiticeiro, com os socialistas a recuperarem nas europeias). A geringonça, por ser uma convergência pós-eleitoral, teve a particularidade de ter o Partido Socialista como força maioritária, mas com necessidade dos outros partidos para governar, equilibrando um pouco essa relação de forças.

            Mas que processos unitários e relações de forças se colocam no horizonte do Bloco e como devemos lidar com eles? A esquerda portuguesa permanece fragilizada e tem recuado. Travar essa diminuição não significa só procurar alianças táticas para encontrar espaços institucionais que invertam a narrativa de que estamos em crise. O objetivo da política unitária do Bloco deve ser construir alianças para inverter a sua relação de forças com o Partido Socialista, principal adversário político da esquerda anticapitalista no campo do confronto com a direita, para conseguir impor um programa de transformação social.

            Não significa isso que não haja a possibilidade de outras alianças concretas: as eleições presidenciais, por não implicarem um programa concreto e permitirem uma aliança por detrás de um candidato concreto, podem ser um exemplo disso. Mas na política concreta, as alianças têm de ser pensadas para inverter a relação de forças da esquerda com o Partido Socialista. Caso contrário, qualquer tentativa de convergência, nos casos em que inclua o PS, será sempre pervertida pelo papel deste enquanto intermediador que procura degenerar qualquer tentativa de política transformadora. A política da esquerda é disputa da relação de forças para objetivos programáticos claros.

O programa da Nova Frente Popular francesa para os 15 primeiros dias de governo (resumo)

O governo da Nova Frente Popular tem uma única prioridade desde o momento da sua tomada de posse: responder às urgências que atingem a vida e a confiança do povo francês. Vamos acabar com a brutalização e os abusos dos anos Macron. Vamos adotar imediatamente 20 medidas de rutura para responder à emergência social, ao desafio climático, à reparação dos serviços públicos, a um caminho de apaziguamento em França e em todo o mundo. Para que a vida possa mudar a partir do verão de 2024.

Declarar o estado de emergência social

  • Fixar por decreto o preço dos géneros alimentícios de primeira necessidade, da energia e dos combustíveis, e reforçar o mecanismo de proteção da qualidade-preço nos territórios ultramarinos
  • Revogar imediatamente os decretos que aplicam a reforma de Emmanuel Macron que aumenta a idade da reforma para 64 anos, bem como a reforma do subsídio de desemprego
  • Aumentar a pensão contributiva mínima para o nível do salário mínimo e a pensão mínima de velhice para o nível do limiar de pobreza
  • Aumentar os salários através do aumento do salário mínimo para 1.600 euros líquidos, do aumento do indexante dos funcionários públicos em 10% (com compensação total para as autoridades locais) e do aumento dos subsídios de estágio e dos salários dos aprendizes e estagiários em cursos de formação contínua.
  • Encetar negociações comerciais, garantindo um preço mínimo para os agricultores e tributando os super-lucros dos agro-industriais e da grande distribuição
  • Aumentar em 10% o  subsídio de habitação personalizado.

Enfrentar o desafio climático

  • Decretar uma moratória para os grandes projectos de infra-estruturas de auto-estradas
  • Adotar uma moratória sobre as mega-bacias
  • Aplicar regras precisas de partilha da água em todas as atividades

Defender o direito à habitação

  • Relançar a construção de habitação social, revertendo os cortes anuais de 1,4 mil milhões de euros de Macron às organizações de habitação social
  • Criar alojamentos de emergência para um acolhimento incondicional e, em situações de emergência, requisitar as habitações vazias necessárias para alojar os sem-abrigo.

Recuperar os serviços públicos

  • Organizar uma conferência para salvar o sistema hospitalar público da saturação durante o verão e propor a revalorização do trabalho noturno e ao fim de semana para o pessoal hospitalar.
  • Restaurar o objetivo emancipatório da escola pública, revogando o “choque de conhecimentos” de Macron, e preservar a liberdade pedagógica
  • Dar os primeiros passos para tornar a escola totalmente gratuita: cantina, material, transportes, atividades extra-curriculares, etc.
  • Aumentar o montante do Pass’Sport para 150 euros e alargar a sua utilização ao desporto escolar, a tempo do início do novo ano letivo

Apaziguar

  • Relançar a criação de empregos subsidiados para as associações, nomeadamente as associações desportivas e de educação popular
  • Criar as primeiras equipas de polícia de proximidade, proibir os LBD e as granadas mutiladoras e desmantelar a BRAV-M [brigada de repressão da ação violenta motorizada].

Colocar a mudança na Europa na ordem do dia

  • Rejeitar as restrições de austeridade do pacto orçamental
  • Propor uma reforma da Política Agrícola Comum (PAC)

A urgência da paz

Promover a diplomacia francesa ao serviço da paz

Para pôr fim à guerra de agressão de Vladimir Putin e assegurar que ele responda pelos seus crimes perante a justiça internacional: Defender sem hesitação a soberania e a liberdade do povo ucraniano e a integridade das suas fronteiras, fornecendo as armas necessárias, anulando a sua dívida externa, confiscando os bens dos oligarcas que contribuem para o esforço de guerra russo no quadro permitido pelo direito internacional, enviando capacetes azuis para proteger as centrais nucleares, num contexto internacional de tensão e guerra no continente europeu, e trabalhar para o regresso da paz.

Agir em prol de um cessar-fogo imediato em Gaza e de uma paz justa e duradoura

  • Romper com o apoio doloso do Governo francês ao governo supremacista de extrema-direita de Netanyahu para impor um cessar-fogo imediato em Gaza e garantir o cumprimento da ordem do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que refere inequivocamente um risco de genocídio.
  • Agir pela libertação dos reféns detidos desde os massacres terroristas do Hamas, cujo projeto teocrático rejeitamos, e pela libertação dos presos políticos palestinianos
  • Apoiar o Tribunal Penal Internacional (TPI) na sua ação penal contra os dirigentes do Hamas e o Governo de Netanyahu
  • Reconhecer imediatamente o Estado da Palestina ao lado do Estado de Israel, com base nas resoluções da ONU
  • Declarar um embargo ao fornecimento de armas a Israel
  • Impor sanções contra o governo de extrema-direita de Netanyahu até que este respeite o direito internacional em Gaza e na Cisjordânia
  • Exigir a suspensão do Acordo de Associação UE-Israel, condicionado ao respeito dos direitos humanos
  • Permitir a realização de eleições livres sob supervisão internacional, para que os palestinianos possam decidir o seu próprio destino
  • Garantir o respeito pela soberania do Líbano e a proteção dos 700 soldados da paz franceses que trabalham com capacetes azuis em nome do direito internacional