Reforçar o Bloco para o tempo de lutas mais intensas

As teses da VI Conferência Nacional da Rede Anticapitalista resumem alguns dos elementos da análise política no contexto da crise que conduz a eleições no início de 2024, assim como da relação de forças e experiência militante nos movimentos sociais, procurando identificar algumas prioridades. Não se pretende fazer uma análise global, como compete a um partido – essa foi a função da Convenção do Bloco. Também não se trata de algumas questões importantes para a atividade militante, que serão discutidas na Conferência, se bem que se indiquem algumas delas. Será tanto o espaço da Conferência como o período de trabalho político que esta lança que consolidarão o projecto que nos agrega e nos move.

Uma conjuntura com raízes no século passado

1.1. O colapso da ex-União Soviética e a queda do muro de Berlim são dois acontecimentos consecutivos que marcaram uma viragem substantiva na evolução da situação internacional: o mundo bipolar – EUA/URSS – terminou e o capitalismo venceu a sua disputa contra o sistema burocrático de hegemonia estaliniana, que vigorava em todos os países do Leste da Europa.  Daí resultou um novo fôlego do capitalismo à escala mundial, bem como a afirmação dos EUA como o principal poder económico e político com capacidade para determinar e/ou condicionar a evolução das principais disputas estratégicas na geografia política mundial. Dois anos bastaram para se perceber quem “mandava”: a primeira guerra do Golfo em 1991, anunciou o papel de polícia do mundo da hegemonia americana no mundo.

1.2. Esta nova fase do imperialismo norte-americano potenciou uma nova era nas relações económicas, caracterizadas pela expansão do capitalismo no mundo, fruto não apenas da abertura de novos mercados, como pela inclusão de novos territórios alinhados pela mesma matriz sistémica do poder capitalista.  As duas últimas décadas do século XX conheceram uma nova da globalização económica e financeira, apoiada novas guerras imperialistas, quer de escala global (Guerra do Golfo 1991, 2ª Guerra do Golfo 2003 – a coberto da grande mentira das “armas e destruição maciças”), quer de escala regional na própria Europa (guerra da Jugoslávia 1992-95, guerra do Kosovo 1996-99), todas com a intervenção da NATO/EUA. Essa expansão é já um facto consumado.

1.3. Como se percebe, desde o colapso da URSS, os EUA e a NATO tudo fizeram para reforçar o seu domínio unipolar no mundo. A expansão da NATO a Leste da Europa não produziu sociedades democráticas, produziu regimes autocráticos herdados dos antigos regimes burocrático-estalinistas, dominados pelos respetivos Partidos Comunistas e pelos seus sucessores. No meio de várias convulsões sociais internas, o resultado do assalto aos aparelhos de Estado nacionais foi a emergência de poderes oligárquicos poderosos, capazes de alimentar a formação de classes sociais intermédias através da distribuição de migalhas do seu vasto poder e assente na exploração e capitalização dos recursos e riquezas naturais desses países. Do regime anterior nasceu o atual capitalismo de Estado com a mesma ambição de crescimento e de génese de dominação que o capitalismo do chamado mundo ocidental: a expansão dos seus territórios/mercados e a acumulação de capital e de poder.   

1.4. A fórmula do “crescimento infinito” (vulgo crescimento do PIB), apoiada na multiplicação dos processos que conduzem ao crescimento da acumulação capitalista e das gigantescas desigualdades sociais, as militarizações dos conflitos de conquista dos territórios, junto com o aquecimento global e alterações climáticas subsequentes, constituem as grandes ameaças que se colocam à vida dos povos e dos Estados subordinados na hierarquia da dominação capitalista global.  O capitalismo é o grande predador da vida em comum num mundo globalizado como o que vivemos. A pulsão para a “resolução” dos conflitos pela força das armas é não apenas o reflexo do poderio do complexo militar-industrial de raiz essencialmente norte-americana, como é expressão da ascensão dos governos de extrema-direita e protofascistas que recorrem à militarização dos conflitos para esmagar as resistências populares, os direitos dos trabalhadores, as suas organizações sindicais e partidos de esquerda, e, desta forma, imporem mais sacrifícios, mais desigualdade e mais discriminação em todo o mundo globalizado pela injustiça e a exclusão.  Por outro lado, a corrida aos armamentos e as guerras agravam o aquecimento global.

1.5. A continuação das guerras em curso na Ucrânia e na Palestina apenas configuram uma certeza: o prolongamento dos conflitos no tempo – como reconhecido pelos promotores dos conflitos – revelam cada vez mais que uma vitória militar de qualquer dos lados se afigura como cada vez mais inverosímil e que por isso o caminho para a resolução dos conflitos é o cessar-fogo e o desenho de uma solução política para os conflitos.

1.6. Nessas disputas, o Bloco deve tomar posição e promover ativamente a discussão das únicas alternativas viáveis: cessar-fogo, negociação entre os intervenientes com mediação da ONU, desenho de soluções políticas que respeitem o direito de autodeterminação dos povos e que consagrem a sua autonomia política e independência dentro de novos quadros estatais a construir – na Ucrânia, como na Palestina/Gaza – protagonizados pelas forças intervenientes. Isto tanto se aplica ao contexto da guerra da Ucrânia, como ao da guerra de Israel contra a Palestina, onde a “solução” proclamada de dois Estados é hoje uma mera proclamação pois não se percebe em concreto como se poderá aplicar já que o objetivo militar anunciado é a exterminação de um povo.   

Quatro movimentos

1.7 Em todos estes conflitos há movimentos e lutas sociais, de nível desigual e com contradições, que se têm constituído como os pilares da resposta revolucionária: o anticapitalismo pela transição energética, pela socialização dos bens fundamentais e pela reconversão da produção e consumo; a esquerda pelo fim da guerra da Ucrânia e no Médio Oriente, pela autodeterminação dos povos, pela retirada do imperialismo russo e do colonialismo israelita e pela constituição de um Estado palestiniano, recusando a extensão da NATO e todas as formas de exterminismo ou genocídio; os movimentos contra a desigualdade e a exploração – a começar pela reorganização do movimento laboral com novas formas de sindicalismo de base – pela expropriação do poder financeiro, de que foram expressão há uma década o Occupy Wall Street, as lutas pela reestruturação e abolição das dívidas ou agora contra a pirataria e o saque financeira; e as lutas pela destruição do oligopólio e da colmeia digital, pela criação de formas reguladas e abertas de comunicação.

A ameaça de avanços eleitorais das extremas-direitas

1.8. Em 2024 haverá eleições em países que somam metade da humanidade: as eleições europeias e na Alemanha, Bélgica e Reino Unido (municipais); no Brasil (municipais), México e EUA; Índia, Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Taiwan; Rússia; África do Sul e Austrália, entre outros países. Nalgumas destas eleições há uma disputa de poder que tem um efeito de arrastamento sobre todo o mundo, em particular a possível tentativa de Trump obter um novo mandato, o que significaria o ponto mais alto do avanço da extrema-direita.

As esquerdas e os desafios das eleições europeias

1.9. Ainda no contexto internacional, as eleições europeias do próximo verão são o desafio eleitoral logo depois das eleições parlamentares do início de 2024. Os nossos resultados em 2019 e as disputas fortes no parlamento europeu não devem fazer esconder um recuo das esquerdas europeias, particularmente na Alemanha e em Espanha, se bem que em França, pelo contrário, a coligação liderada por Mélenchon esteja a ser parte fundamental da recomposição política. É neste contexto que surge um risco acrescido para o Partido da Esquerda Europeia e para o grupo parlamentar The Left, com sinais de fragilização.

O movimento contra as guerras

1.10. A luta contra o imperialismo e as guerras tem por objetivo atual construir mobilizações de emergência contra o genocídio na Palestina e propondo soluções que impeçam a continuação da guerra da Ucrânia. Os movimentos pela paz e autodeterminação dos povos são inseparáveis do combate democrático e socialista no mundo. O Bloco deve promover e participar em fóruns de discussão destas guerras e, se possível, escalar tais Fóruns para contextos nacional, ibérico e europeu juntando todas as esquerdas que se batem pelo cessar-fogo, por soluções políticas e pela paz.

O contexto nacional

A viragem de 2022

2.1. A última conferência da Rede foi antes das eleições de 2022. Os factos políticos mais importantes desde então foram a constituição da maioria absoluta do PS e o seu colapso nestes dias recentes. A maioria absoluta produziu quatro mudanças: na forma de governação, abrindo a porta aos interesses económicos que estavam limitados pelos acordos da geringonça; no tipo de acção do PS, que se baseou na distribuição de promessas e subsídios para atenuar o efeito imediato de uma política liberal que tem por objetivo desmantelar a saúde e a escola públicas, a segurança social e os serviços públicos de cultura; no espaço dos partidos de direita, prejudicando o acesso do PSD a eleitores do centro ao fazer chantagem sobre uma possível aliança à extrema-direita e naturalizando a sua emergência; e colocou a esquerda na oposição ao governo. Ainda que marcado pela total incapacidade de resolver os problemas graves no SNS, na escola pública e na habitação – que levou as pessoas às ruas e às greves e que agora nunca saberemos se não se traduziria no colapso da maioria absoluta -, foi, no entanto, pelas circunstâncias internas e por investigações relacionadas com alguns dos grandes negócios na energia que o Primeiro Ministro acabou por se demitir, daí resultando a queda do Governo.

Portugal na estratégia do Governo Costa

2.2. A estratégia do Governo da maioria absoluta foi coerente em quatro objetivos: consolidou a sua dependência da finança internacional, através da gestão da dívida pública, do oferecimento da saúde aos grupos privados, da proteção dos lucros das grandes distribuidoras com a espiral inflacionista e das facilidades oferecidas à banca, que, excepto a CGD, é espanhola, catalã, angolana, chinesa e norte-americana; promoveu a acumulação pela renda imobiliária, criando uma nova pequena-burguesia, (dezenas de milhares de proprietários de alojamento local) e, sobretudo, abrindo o país aos fundos financeiros do setor, do que resulta uma dinâmica de colonização das cidades e de parte do litoral por endinheirados estrangeiros; reforçou a opção do turismo como a especialização internacional de Portugal; e atacou os sindicatos e os movimentos sociais, tendo na negligência flagrantes com a escola pública e o SNS  a melhor demonstração do seu autoritarismo.

Quatro crises agravadas pelo PS

2.3. Esta orientação acentuou quatro tensões: a política, na coexistência com o Presidente, que teve vantagens mútuas e que se esgotou; a social, pelo efeito da desagregação dos sistemas de saúde e educação na vida de uma parte do povo, agravado pelos superlucros dos distribuidores alimentares, da energia e da banca; a democrática, dada a prática autoritária que marcou a maioria absoluta; e ainda a económica e social, com a promoção de uma política que tem sido o caldo da cultura da xenofobia contra imigrantes, multiplicando formas de exploração dos trabalhadores e trabalhadoras não legalizadas e os discursos e as práticas racistas. Estas crises estabelecem o pano de fundo sobre o qual iremos a eleições em 2024.

As eleições de 2024

2.4. As eleições de 2024 serão disputadas pelo PS depois do esgotamento político da maioria absoluta, das crises sociais provocadas pela sua ação e do seu colapso no contexto de acusações judiciais cujos contornos ainda são essencialmente desconhecidos. A consequência, em qualquer caso, é que o PS não voltará a ter maioria absoluta e as suas vítimas só conseguirão reparação com um programa político de reconstituição das políticas sociais e de uma estratégia socialista para a economia e para a vida social. Esse programa compete ao Bloco e é por essa razão que, tendo sido uma oposição frontal,  se deve agora empenhar em apresentar alternativas realizáveis e profundas, assentes nas prioridades demonstradas pelas mobilizações sociais, da habitação à educação e do ambiente às políticas de igualdade.

2.5. Os diversos partidos responderam de modo distinto à maioria absoluta. O PCP preferiu uma política de apaziguamento com o PS, que o levou a prolongar uma atitude conciliatória depois da geringonça, tendo, ao mesmo tempo, um fechamento identitário na sua posição pró-Putin e pró-Jinping, e também um maior sectarismo nos movimentos sociais. O Livre adaptou-se ao PS e ao fingimento de negociações orçamentais com o resultado de multiplicar promessas de estudosnão são realizados, bem como à manutenção acrítica do status quo da ordem liberal da união europeia, sobretudo a arquitectura da moeda única. O PAN mantém a sua identidade como não sendo nem de esquerda nem de direita, prestando-se a acordos que sustentam o governo de direita na Madeira ao mesmo tempo que se aproximou do PS em São Bento. Quanto à direita, não restarão dúvidas de que o PSD se aliará ao Chega se essa necessidade surgir, como aconteceu nos Açores. Importa notar a expansão da Iniciativa Liberal entre 2019 e 2022, como o expoente máximo do capitalismo neoliberal rentista em Portugal e como expressão de uma clientela social que quer que o Estado lhe garanta rendas generosas. O Chega beneficiou das crises da direita e da degradação social imposta pelas medidas do PS e, embora a sua participação em qualquer cargo executivo – em autarquias e na base de apoio do governo dos Açores – se tenha sempre transformado num fiasco, apresenta sinais de que se poderá reforçar eleitoralmente com os discursos de ódios e a recente desacreditação das relações institucionais.

O agravamento da situação sócio-económica

2.6. Neste contexto político tem-se assistido a um empobrecimento geral da população e ao agravamento da situação financeira da classe trabalhadora, que se estabeleceu com a crise de custo de vida provocada pela inflação. A governação da maioria absoluta demonstrou uma falta de capacidade estratégica de lidar com esta crise, preferindo antes a redução dos salários reais de uma parte dos trabalhadores e trabalhadoras enquanto outros salários sofrem aumentos mínimos e esporádicos, numa política que beneficia sempre os grandes grupos económicos. Esse progressivo empobrecimento é reforçado pela política monetária do BCE de subida dos juros e pela turistificação das cidades, dando forma a uma crise de habitação que deixa centenas de pessoas sem casa e milhares em situações precárias com o aumento das rendas e empréstimos de habitação, enquanto o salário mínimo sofre aumentos mínimos e esporádicos. Nas eleições de 2024, os falhanços do PS serão um fator de demarcação entre o centro e a esquerda. O Bloco afirmou e afirmará o seu terreno político na luta por uma vida boa que significa a defesa dos serviços públicos, dos trabalhadores e das trabalhadoras, e do socialismo – tudo aquilo a que a governação do PS se opôs.

O ataque ao direito aos bens e serviços públicos

2.7. A crise nos serviços públicos é uma forma indirecta de transferência de rendimento do trabalho para o capital. O subfinanciamento a que estão sujeitos, a que acresce a degradação das condições de trabalho dos seus e das suas profissionais, diminui a sua qualidade e prejudica gravemente o acesso aos mesmos. Para além de diminuir o salário indirecto que os serviços representam, esta estratégia de desinvestimento procura construir a “inevitabilidade” da falência do Estado Social, da insustentabilidade da Segurança Social e da imposição de entregar partes cada vez mais significativas desses mesmos serviços e do sistema de reformas ao mercado privado, garantindo-lhe rentabilidade através do financiamento do próprio Estado. Em conjuntura de crise sócio-económica, aos salários e pensões baixas acresce a falta de médicos, a falta de professores, ou o endividamento das famílias com seguros de saúde ou prestações a colégios privados.

As consequências da política europeia

2.8. Este agravamento demonstra uma vez mais os problemas das estruturas políticas da União Europeia e a consequência de uma política monetária centralista e tecnocrática com contornos anti-democráticos. Face ao aumento da crise de custo de vida, sofremos uma subjugação à política da estandardização europeia, que procura a mesma solução para as mais diversas situações dentro da União. É à custa desta política que ficamos também bloqueados no desenvolvimento económico e reféns de tratados e políticas de instituições que têm acentuado o empobrecimento do povo português. Outro dos problemas estruturais é a subordinação ao imperialismo norte-americano, de que é prova a hipocrisia da UE no posicionamento da questão palestiniana.

A luta e os movimentos sociais

Movimentos e lutas sociais como base da nossa organização

3.1. A luta social e a construção dos movimentos sociais são a base de organização da Rede Anticapitalista. São a prática fundamental para a criação de processos unitários e maiorias sociais que intensifiquem a luta de classes, unam a esquerda, desmontem o sectarismo e rejeitem a lógica de mobilizações grupusculares e de isolamentos messiânicos. A Rede Anticapitalista reconhece a diversidade e a abrangência da luta social anticapitalista e afirma a sua presença através da solidariedade, da participação militante no movimento social e da formação de uma militância que consiga construir, articular e desenvolver a luta em todas as frentes contra o capitalismo. Não descrevemos nestas teses todas essas lutas nem respondemos em detalhe a problemas de intervenção concreta, mas sublinhamos que é essa capacidade de aprendizagem com as lutas e de multiplicação da imaginação e do combate que faz a força da esquerda que somos.

A crise da habitação

3.2. A crise da habitação já era sentida há muito tempo e ganhou outra dimensão, afirmou uma importante contradição capitalista e abriu a maior tensão social do pós-pandemia, abrindo espaço a uma ampla luta pelo acesso à habitação digna e acessível e permitindo a construção de uma plataforma unitária e abrangente – Casa Para Viver – que permitiu a construção de um bloco social e político contra as políticas de remendo do governo. As tarefas colocadas à esquerda são, por um lado, a do combate aos interesses dos setores imobiliário e turístico, à normalização do alojamento local e do investimento estrangeiro e à inação do Governo, mas também a da organização popular em resistência à lógica dos despejos, do aumento das rendas e juros e da privatização da cidade, bem como da manutenção e desenvolvimento dos processos unitários que nos permitem transformar a sociedade. Para além de casas para viver, é preciso também lutar por bairros para morar, espaços culturais para frequentar e por cidades onde se possam construir vidas e comunidades.

A organização estudantil

3.3. A luta estudantil é fundamental para a organização e atuação de uma organização de esquerda militante com base social. As e os estudantes enquanto sujeitos políticos são centrais para a reformulação e concretização do ensino público e da sua universalização. Ao nível do ensino superior, pela garantia do acesso, é premente combater todos os entraves colocados pelo regime fundacional e pela institucionalização das faculdades. Reconhecendo as dificuldades que se agravaram na organização estudantil com a pandemia, deve tornar-se agora uma prioridade retomar o trabalho estudantil sistemático tantos nas universidades como nas escolas secundárias, trabalho esse que deve ser organizado em torno do ensino público de qualidade, do fim da propina, e da garantia do alojamento estudantil. O feminismo, a luta LGBTQI+, a luta climática e todas as outras lutas que constroem a identidade de uma esquerda anticapitalista devem ser inerentes e transversais ao movimento estudantil. No ensino secundário a mobilização em torno da disputa política de ideias é fundamental para contrariar a hegemonia da educação neoliberal e formar sujeitos politicamente conscientes e ativos. Nas universidades, a recusa e a resposta à praxe abrem também um campo para a construção de alternativas através de formas de solidariedade e luta estudantil.

Lutas laborais

3.4. Apesar das baixas taxas de sindicalização, este ano testemunhamos a intensificação das lutas laborais e dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras nos grupos profissionais da função pública em geral, e da educação e da saúde em particular. No setor privado, algumas lutas defensivas têm conseguido mobilização, seja por aumentos salariais, seja contra despedimentos ou ações de perseguição e assédio no local de trabalho (transportes, comércio, indústria). No entanto, o movimento sindical continua fragilizado pelos bloqueios na contratação coletiva e incapaz de contrariar eficazmente a lógica de individualização da precariedade, revelando grandes dificuldades em organizar e representar os setores mais precarizados, nomeadamente migrantes. Na CGTP, acentuam-se lógicas de fechamento (traduzidas na ausência de democracia interna e na recusa de adesão de novos sindicatos, se não forem controlados pelo PCP), boicote a alianças unitárias (por exemplo, no âmbito do +SNS), posturas demissionistas sobre determinadas disputas e matérias (por exemplo, teletrabalho e algoritmos) e falta de reflexão estratégica. A decadência da ação sindical abre espaço para novos discursos oportunistas que procuram capitalizar a insatisfação social. Deve ser prioridade da esquerda representar as massas precárias de trabalhadores e trabalhadoras – as de sempre e as associadas às novas formas de trabalho em plataforma, à invisibilidade social do cuidado e à desregulação da legislação laboral que caem por entre os dedos dos sindicatos – e apoiar os seus embriões de luta e os processos que têm desenvolvido na luta pelos seus direitos. A construção do movimento laboral precisa de mudar a sua dimensão institucional, democratizando a participação e tendo agendas políticas mais ofensivas e mais inclusivas das várias realidades do trabalho. E precisa de renovar o trabalho sindical com vitórias concretas para quem trabalha. Devem ser prioridades: explorar os espaços de democracia e participação em todos os sindicatos em que tais espaços existam; não perder energia em conflitos nas superestruturas da CGTP que não tenham relevância, impacto ou visibilidade na classe trabalhadora; apoiar a luta de coletivos informais de precários, ajudando a que possam organizar-se com maior continuidade; criar novas organizações sindicais quando haja força e massa crítica, dando exemplos de luta e de organização aberta.

A defesa dos serviços públicos

3.5. A luta dos profissionais dos serviços públicos por carreiras dignas tem sido um dos motores do combate à desestruturação do Estado Social, estando empenhados nela inúmeros e inúmeras ativistas do Bloco que assumem, em muitos casos, o protagonismo do combate. Mas a defesa dos serviços públicos é substancialmente mais ampla e exige uma participação mais alargada, a partir do movimento social e da sua expressão popular. Devemos empenhar-nos nestes movimentos unitários pela escola pública, pelo SNS, pela Segurança Social, pelo regime público de pensões, assim como acompanhar, a partir do trabalho local, o processo de descentralização de competências que mais não é do que uma municipalização das funções sociais do Estado. Novas experiências – como o Movimento +SNS – que procuram adicionar à luta dos profissionais um amplo movimento de utentes / utilizadores dos serviços, alargando a frente de resistência social, são disso mesmo exemplo. A cultura é parte integrante e essencial dos bens comuns e do direito a inventar arte e comunidade. Ela é um dos bens comuns que tem sido mais menorizado ou instrumentalizado por governos apostados na mercadorização da cultura, e por isso a reclamamos como um espaço e tempo de criação livre.

A defesa do interior

3.6. O mapa da população residente em Portugal mostra uma litoralização cada vez mais acentuada, numa lógica centralista que se reflete na demografia dos concelhos do interior, que vão sendo esquecidos e esvaziados de serviços públicos, de oportunidades de trabalho e de oferta cultural. Enquanto Rede Anticapitalista, pensamos as nossas lutas numa perspetiva nacional e não apenas litoral, sendo premente a promoção de um projeto de desenvolvimento sustentável, que promova a coesão territorial e a fixação de população nas regiões despovoadas. Esta consciência relativamente às desigualdades territoriais é essencial para resoluções de habitação digna, para uma ação climática eficaz e para o combate ao extrativismo e ao conservadorismo, em zonas onde a população é mais envelhecida. E exprime-se na luta pela construção de infraestruturas, pelo reforço da democracia local, pela valorização de trabalhadores e trabalhadoras, pela regionalização, pela requalificação dos centros históricos e pelo acesso à mobilidade.

A emergência climática

3.7. Enquanto o planeta atinge novos máximos em temperaturas e fenómenos climáticos extremos, a hegemonia neoliberal continua a priorizar a acumulação, como se não existisse um alerta mundial. A luta contra as alterações climáticas tem acontecido longe das instituições, em mobilizações populares e estudantis, como é o caso dos movimentos em defesa do litoral alentejano ou das greves climáticas, que reivindicam o direito a um futuro e que protestam contra a inação. O capitalismo não realizará a descarbonização e, portanto, o movimento por justiça climática deve também ser um movimento de reinvenção da sociedade em linhas ecossocialistas. Para impôr uma transição justa, a esquerda precisa de construir agendas de luta popular em convergência com outros movimentos – laboral, feminista, estudantil – com o objetivo de conquista da maioria social através de propostas abrangentes como, por exemplo, Empregos para o Clima. Recusamos por isso uma visão despolitizada da questão climática que a isola das outras lutas e dos conflitos sociais existentes. A crise climática não suspende a política nem reduz a luta a um tema único (a indústria fóssil). Pelo contrário, a necessidade de uma transição impõe uma estratégia de poder, intensamente política e anticapitalista, assente na articulação das diversas frentes de resistência popular, na criação de empregos para a transição climática e a organização de mobilização.

O movimento antirracista

3.8. As lutas antirracistas tiveram uma forte expressão de massas nos últimos anos, sobretudo em resposta a agressões e violência racista, e foram sendo criadas várias associações e coletivos. Em alguns casos, essas lutas convergiram com outras, por exemplo através das populações de bairros periféricos. Velhas questões sobre o colonialismo, a devolução de arte roubada e a afirmação de culturas oprimidas têm ganho estatuto no país. Embora tenhamos tido um papel forte na luta antirracista, há dificuldades de implantação que se traduzem numa maior capacidade de influência do que de ação.

Por um feminismo anticapitalista

3.9. A popularização do feminismo liberal na cultura ocidental coloca desafios, mas abre brechas que devem ser exploradas. Se por um lado se normalizam políticas e perceções que defendem a igualdade de género, essa defesa raramente vem acompanhada de uma conceção materialista e de uma discussão crítica dos debates que o feminismo liberal impõe sobre a política e o movimento social. O feminismo anticapitalista nunca é só uma declaração, mas um manifesto prático para a sociedade. Não se abstém de fazer esses debates e de afirmar uma posição materialista, anti-punitivista e com uma perspetiva de classe para a construção de um projeto socialista e feminista de organização e sociedade. Para tal, o debate em torno do cuidado tem servido como linha guia para uma proposta feminista e laboral que, transformando a base material patriarcal da nossa sociedade, consiga também transformar a sua superestrutura. A luta pelo Serviço Nacional de Cuidados será essencial nessa agenda.

As lutas LGBTQI+

3.10. Os movimentos LGBTQI+ têm uma frágil expressão organizativa, problema que existe também noutros movimentos sociais, mas respondem a uma opinião pública que é favorável, sobretudo entre jovens. As marchas do Orgulho têm sido dos movimentos mais espalhados pelo país e com carácter massivo e multiplicador, confrontando os riscos de liberalização e de pinkwashing. Os debates políticos sobre identidades e convergências, ou sobre o papel da política de esquerda na resposta à vida de quem sofre opressões, têm crescido, e foram o tema do I Encontro LGBTQI+ do Bloco.

Luta social e disputa política

3.11. A intensificação da luta social foi – e não o é menos agora, pelo contrário – um passo central na disputa institucional com o Governo e com a direita para afirmar a força política do Bloco com um mandato popular que lhe permita combater a nova extrema-direita, as pulsões liberais doPS e o seu centrismo desavergonhado, e criar um projeto socialista maioritário. Mas uma perspetiva dialética do movimento social não deixa de o considerar enquanto espaço de resistência e socialização, de formação militante, campo de disputas políticas e sociais e de construção de processos coletivos com outros projetos políticos. Por isso mesmo é que esse é o ponto de partida da Rede Anticapitalista e de uma força transformadora da sociedade.

O Bloco para as lutas

O percurso desde a última Conferência da Rede

4.1. Os dois anos decorridos entre a última Conferência Nacional da Rede Anticapitalista e a que agora nos reúne foram marcados pelos resultados eleitorais do Bloco nas eleições legislativas de 2022, dos quais resultou a perda de 14 deputados, com um novo Grupo Parlamentar constituído por cinco membros eleitos. A caminho de assinalar dois anos desse momento do percurso do Bloco, tem-se verificado nas sondagens e nos contactos com as pessoas uma recuperação que não deixa de nos responsabilizar, sobretudo quando a mesma conjuntura é marcada pela maioria absoluta do Partido Socialista. Essa responsabilidade acresce agora e é posta à prova com eleições legislativas antecipadas marcadas para 10 de março de 2024 e as eleições europeias pouco tempo depois.

As conclusões do processo da Convenção do Bloco

4.2. Desde a última conferência da Rede, reuniu-se a Convenção do Bloco, cujo resultado não deixa ambiguidades. A Moção A, que resumiu a mensagem do Bloco na proposta da luta por uma “vida boa”, continuou assim o caminho do Bloco insistindo na sua política socialista e anticapitalista e obteve uma vitória. Nos dois temas fundamentais da crítica da lista E, que pretendia a aproximação à posição do PCP sobre a Ucrânia e recusar retrospetivamente a nossa participação na geringonça a partir de 2017 (e considerando os resultados de 2019 – 19 deputadas e deputados – como uma derrota). É num ambiente de reflexão coletiva que podemos aproximar e integrar novos e novas militantes, em linha com uma visão de partido aberto de que não podemos abdicar, o que será fundamental para mais as campanhas que temos pela frente.

Coerência e reforço do Bloco

4.3. Este foi um processo igualmente marcado por uma transição na coordenação de partido. Têm chegado novos e novas aderentes ao Bloco, cuja integração deve ser politicamente ancorada e depurada de picardias internas politicamente vazias, a que o partido fica especialmente susceptível em período eleitoral, nomeadamente no contexto dos processos de elaboração de listas. O Bloco está num momento de crescimento e este é o momento de se reafirmar enquanto referência política para as lutas, com propostas concretas para agora, ligadas a uma estratégia de transformação da sociedade. A Rede Anticapitalista mantém a mesma atitude e política que adotou desde a sua constituição, faz parte lealmente da direção do Bloco, coopera com todas as forças que contribuam para um Bloco de programa e de coerência e combate o sectarismo. Foi contra o sectarismo que o Bloco se constituiu e é contra ele que se manterá uma referência para o povo de esquerda e para a luta social. Como nos ensinam os casos tão frequentes de desagregação de partidos de esquerda pelos seus conflitos internos sectarizados, a capacidade de unificação e de trabalho coletivo entre militantes de origens e com tradições diferentes é o que garante a consistência da nossa política comum – e nisso o Bloco é uma exceção na Europa.

Reinventar a Militância a partir da Rede Anticapitalista

4.4. A Rede Anticapitalista é parte da construção do Bloco e dos seus espaços de militância. Os órgãos do partido (distritais, concelhias, núcleos) devem ser contexto de experimentação de política coletiva, não devendo a Rede permitir que se enquistem ou se elitizem em estruturas eleitas. Os e as ativistas da Rede devem apoiar dinâmicas locais de funcionamento aberto, iniciativas de formação, discussão e convívio. A Rede deve preparar a sua militância para o esforço de duas campanhas eleitorais seguidas e tornar mais regulares os plenários locais e melhorar a audiência das suas conferências de formação política. Nesse âmbito, a Revista Anticapitalista é uma peça-chave e deve ser instrumento de construção da Rede, formação e aprofundamento crítico.

Militar com empenho e prazer

4.5. A Rede deve ser um espaço de trabalho colectivo gerador de transformações sociais que agrega e favorece a criação de relações de camaradagem – a experiência ativista e partidária torna-se não poucas vezes uma componente central das vidas de cada uma e de cada um e o impacto que daí deriva deve traduzir-se num equilíbrio entre um inevitável grau de exigência e o retorno que pode trazer em termos pessoais e sociais. Nesse sentido, a manutenção de momentos de convívio com uma marca de contracultura é essencial e deve ser explorada a possibilidade de diálogos na Rede para lá das suas fronteiras.

A responsabilidade da Rede no reforço das lutas mais intensas

4.6. Não se tratam e muito menos se aprofundam nestas teses todas as dimensões específicas da intervenção política da Rede e do Bloco. A VI Conferência Nacional da Rede Anticapitalista constitui um espaço para a reflexão e a ação que se deve prolongar, a partir do caminho já percorrido. Campos como as lutas na saúde, na cultura, na educação, ou a intervenção ao nível do trabalho local, ainda que transversalmente presentes nestas teses, devem ser alvo e resultado do trabalho contínuo das e dos ativistas da Rede Anticapitalista nos próximos dois anos – como tem acontecido, aliás -, com discussão, construção e intervenção concreta nos movimentos, no partido e através de iniciativas próprias.

Rotinas e iniciativa

4.7. Estabelecemos nos últimos anos uma regularidade que nos serve de referência: a publicação da revista, que já ultrapassou as 60 edições na presente série. É um esforço organizativo e financeiro importante, que procura aprofundar temas teóricos, dar informação complementar e criar reflexão sobre movimentos e lutas. No âmbito da Conferência, é importante refletir sobre o seu formato, concepção, divulgação e objetivos. Temos também os encontros de formação anuais da Rede, nos quais fazemos os grandes debates com os quais os movimentos sociais se debatem. Apoiamos a divulgação da biografia de Marx, por Daniel Bensaid. As edições Combate! planeiam a publicação de um livro de Enzo Traverso sobre a extrema-direita e caberá à Rede contribuir para um plano de edições nos próximos dois anos. Os 50 anos do 25 de Abril serão um tempo de intenso debate ideológico e de confronto de projetos para a sociedade.