Psicanalista discípulo de Freud (com quem acabaria por romper), Wilhelm Reich foi um heterodoxo e um pioneiro, que chamou a si a tarefa de desenvolver uma convergência entre o marxismo e a psicanálise. Não se tratou só de um contributo teórico ao pensamento crítico, mas sobretudo de incorporar na estratégia revolucionária a dimensão da sexualidade, do prazer e da felicidade. Tudo isto antes de Simone de Beauvoir ter escrito O Segundo Sexo e décadas antes do movimento estudantil dos anos 60 e da emergência dos feminismos da segunda vaga terem declarado que “o pessoal é político”.
Reich foi influenciado pelas ideias de Alexandra Kollontai de que a revolução também deveria abarcar a sexualidade e pelas políticas por ela propostas e desenvolvidas nos primeiros anos do Estado soviético: legalização do divórcio, descriminalização do aborto e da homossexualidade, ‘liberdade sexual’, rutura com a ideia burguesa do casamento, defesa do poliamor e do amor-camaradagem.
Em Viena, ainda como colaborador próximo de Freud, Reich milita no Partido Social Democrata e dá aulas de educação sexual e consultas nos bairros operários onde vivenciou a miséria psíquica e sexual.
Fundou uma sociedade socialista de aconselhamento sexual e de sexologia que abriu clínicas de higiene sexual e lutou pela legalização do aborto. Fundou também o movimento Sexpol, juntando jovens e profissionais de saúde que organizaram grupos de trabalho e cursos de educação sexual. Esta atividade fá-lo aprofundar a ideia de que a repressão sexual é causada pelo capitalismo e de que nas estratégias para o derrubar há que incluir a dimensão da libertação sexual.
Reich saiu de Viena para Berlim em 1930 onde, nesses anos, fervilhavam os coletivos independentes dos partidos políticos a favor das ‘reformas sexuais’ que defendia. Mas, Reich considerava estas organizações reformistas, já que não pugnavam por nenhuma alteração do sistema capitalista, e propôs-se unificá-las e trazê-las para o KPD, para onde entrou em 1930. O Combate Sexual da Juventudefoi publicado em 1932 pelo próprio partido comunista que Reich se empenhou a fundo em educar, em particular a juventude.
A política sexual de Reich
Um dos argumentos centrais de Reich, desenvolvido em A Psicologia de Massas do Fascismo, é que
«a inibição moral da sexualidade natural na infância, cuja última etapa é o grave dano da sexualidade genital da criança, torna a criança medrosa, tímida, submissa, obediente, “boa” e “dócil”, no sentido autoritário das palavras. Ela tem um efeito de paralisação sobre as forças de rebelião do homem, porque qualquer impulso vital é associado ao medo; e como sexo é um assunto proibido, há uma paralisação geral do pensamento e do espírito crítico. Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indivíduo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da humilhação. Assim, a família é o Estado autoritário em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que será exigido dela mais tarde».
Ou seja, a família é um microcosmo que reproduz a repressão do Estado, fabricando indivíduos obedientes com personalidades autoritárias por via da repressão sexual. Cabe à família garantir a aceitação do casamento monogâmico, que é central para a manutenção da instituição da propriedade privada que sustém a ordem capitalista.
Em SEX-POL, Reich vê a emancipação como a perda de tabus e inibições sexuais, uma ideologia positiva e afirmativa do sexo.
«Para falar sem rodeios, o que preocupa realmente os jovens não é a reprodução, mas sim a contraceção e a o prazer sexual numa altura de amadurecimento juvenil. Eles estão sobretudo concentrados em organizar a sua vida afetiva, mas o capitalismo não garante as precondições para que isso possa acontecer».
Entre essas condições materiais concretas para uma vida afetiva e sexual gratificante aponta a dificuldade em arranjar casa, a falta de tempo por causa do trabalho, falta de recursos económicos e a precariedade.
Para Reich, a pré-condição para a libertação sexual é a reorganização económica e social completa: fim da propriedade privada do imobiliário (socialização da habitação), mulheres independentes dos maridos, pais sem direito de oprimir crianças, educação pública e gratuita das crianças.
No último capítulo de O Combate Sexual da Juventude, conclui dizendo que
«Na sociedade capitalista não existe libertação sexual da juventude, ou uma vida sexual saudável e satisfatória. Se quiserem ver-se livres da miséria sexual, então lutem pelo socialismo».
De notar que vários dos textos de Reich da política sexual foram escritos nos anos que acompanharam a subida do fascismo na Alemanha. Já era tarde. A revolução alemã tinha sido derrotada, o KPD seguia um curso estalinista, a URSS estava sob um curso conservador. O KPD não tardou a paulatinamente prescindir das atividades educativas de Reich.
Reich foi expulso do KPD em 1933 e da Sociedade Internacional de Psicanálise em 1934. Banido em 1936, teve de deixar a Alemanha nazi. Instalou-se nos EUA em 1939. Acabou por ficar à margem não só das sociedades de psicanálise, mas também da esquerda, nessa altura dominantemente estalinista. A desilusão com o curso contrarrevolucionário e conservador da União Soviética (regresso à promoção da família tradicional, criminalização da homossexualidade, aborto, etc.) fá-lo afastar- se do marxismo, ao ponto de algumas reedições das suas obras dos anos 1920-1930 serem por ele próprio expurgadas das referências à luta de classes ou à consciência de classe.
Reich hoje
Os anos 1960-1970 trouxeram um novo interesse pelas suas teorias. Primeiro, nas mobilizações da juventude estudantil na Alemanha em 1966. Depois, em Nanterre (Paris) em 1967. O movimento 22 de março, o grande catalisador da explosão de maio 1968, inspirou-se e adotou as ideias de Reich sobre a repressão sexual. O Combate Sexual da Juventude foi vendido ou distribuído porta a porta nas residências estudantis.
As suas ideias fizeram caminho nas vagas estudantis em outros países. Portugal não foi exceção e ler e pensar Reich (mesmo antes de 1974) foi também uma marca distintiva de algumas organizações políticas ou estudantis: a esquerda mais ligada ao estalinismo a condenar ou menosprezar os seus contributos, enquanto, para a esquerda antiestalinista ou libertária, esse marxismo heterodoxo era bem-vindo e permitia pensar o quotidiano e todas as dimensões da opressão e da alienação.
A segunda vaga do feminismo dos anos 1970 trouxe de novo a questão da libertação sexual e do prazer, agora numa época em que o desenvolvimento dos métodos contracetivos garantia, pela primeira vez, a dissociação do prazer e da reprodução. Sem analisar a relação difícil entre os feminismos e a psicanálise, vamos referir a importância das ideias de Reich para algumas das estratégias feministas: não vamos esperar pela revolução socialista para colocar na ordem do dia as questões da sexualidade e do prazer, elas devem integrar a luta anticapitalista de hoje.
Movimentos feministas conquistaram então direitos por toda a parte e fizeram-se avanços consideráveis em matéria de libertação sexual. Por um lado, o sexo já não é tido apenas como ato de procriação, há um enfraquecimento real dos tabus relativos a este tema, assim como de instituições caras à moral sexual burguesa, nomeadamente o casamento, ao mesmo tempo que se venceram batalhas importantes contra o conservadorismo na conquista de direitos sexuais e reprodutivos e de maior tolerância, reconhecimento e direitos para as minorias sexuais.
Por outro lado, estamos longe ainda de uma emancipação sexual completa. A heteronormatividade e a monogamia afiguram-se ainda como instituições dominantes da moral sexual. É curioso o trabalho desenvolvido em torno do conceito de homonormatividade, que designa a adoção de padrões e normas heteronormativas em relações LGBTQIA+, como o casamento e monogamia, demonstrando bem as limitações das conquistas alcançadas. A discussão pública da sexualidade é ainda desencorajada, persistindo tabus e atitudes puritanas, assim como fortes estigmas contra práticas sexuais não-normativas. Permanecem estruturas patriarcais que perpetuam a opressão das mulheres em várias dimensões, quer seja pela desigualdade da repartição do trabalho reprodutivo, pelas expetativas de inibição sexual ou pela sujeição à violência sexual machista.
Tais insuficiências são, em parte, consequência dum feminismo liberal em que
«o sujeito coletivo tem cedido lugar a casos individuais, erodindo a ideia de que a opressão é estrutural e afeta, mesmo que diferentemente, todas as mulheres. Um feminismo centrado nos tetos de vidro e na capacitação individual como receita para a superação das desigualdades é um logro».
Contra o conselho de Reich, um feminismo que não contemple uma crítica sistémica à organização económico- social, isto é, que não seja anticapitalista, falhará em conquistar a libertação sexual completa por não atacar as pré-condições da repressão sexual.
A economia sexual da manosfera
A abordagem da economia sexual de Reich, situando-se no cruzamento de fatores psíquicos e económicos, pode oferecer pistas importantes para a análise da manosfera.
Vale a pena começar pela constatação da enorme precarização das nossas vidas no regime neoliberal, pela estagnação dos salários, insegurança laboral, privatização de serviços públicos essenciais, entre outras questões. A crise financeira de 2008 e o período sucedâneo são de deterioração acentuada devido à austeridade, em primeiro lugar, e posteriormente ao aumento exponencial dos custos da habitação. Nestas décadas tem também lugar a maior transformação na infraestrutura do capitalismo neste século – a disseminação das tecnologias de informação e comunicação –, com particular expressão nas gerações mais jovens.
Ao mesmo tempo, este é um período, particularmente as duas primeiras décadas do século XXI, de avanços importantes nos direitos das mulheres e na sua condição no geral: direitos reprodutivos, diminuição do fosso salarial, aumento na formação superior, inter alia.
Persistiu, no entanto, a hegemonia de papéis tradicionais da masculinidade, que fazem a apologia de características como a força, a resiliência, o sucesso económico e a capacidade de prover. Tais entendimentos de masculinidade tornam-se difíceis de suster neste regime de economia política, em que o desemprego, a
precariedade, a dificuldade em encontrar casa e o adiamento da emancipação económica da família provocam nos homens, muito particularmente, uma sensação forte de crise ou de perda de estatuto.
Este fenómeno psíquico, interpretado como um fracasso individual e de forma desligada da totalidade social em virtude do fetichismo imposto pelo capitalismo tardio, torna os papéis tradicionais de masculinidade mais atrativos por fornecerem um referencial de estabilidade e segurança ontológica – o machismo e o antifeminismo tornam-se num caminho de reabilitação da masculinidade.
De facto, vários estudos demonstram um ressentimento na população masculina com o avanço do feminismo e a progressão das mulheres na sociedade, vendo-as como uma ameaça às oportunidades dos homens. Contudo, não há nenhuma inevitabilidade em que maior precariedade resulte necessariamente neste tipo de atitudes. A proliferação da internet e das redes sociais fornece uma plataforma formidável para que determinados agentes possam predar a vulnerabilidade destes jovens homens, inculcando estas narrativas para fins políticos ou financeiros. É o caso de influencersdigitais machistas, comunidades de incels e outros fóruns semelhantes e partidos de extrema-direita. No entanto, seria errado localizar a causalidade somente nas plataformas digitais. Elas fornecem apenas a estrutura de oportunidade – mais do que perceber como estas atitudes são disseminadas, importa compreender porque é que elas encontram tanta recetividade e são tão facilmente interiorizadas. É essa a vantagem de uma abordagem da economia sexual.
Ademais, importa considerar os efeitos da digitalização do quotidiano na atividade social e sexual dos adolescentes, nomeadamente da geração atual, que cresceu nativa digital. Alguns estudos em países desenvolvidos, como a Suécia e os Estados Unidos da América, apontam para mudanças importantes nos padrões de atividade sexual, dos quais destacamos a iniciação sexual mais tardia e a menor frequência de atividade sexual. A relação causal é difícil de estabelecer com precisão, mas é plausível afirmar que a adição ao ciberespaço, associada a isolamento, ansiedade e depressão, esteja a revigorar a repressão sexual conjuntamente com as condições materiais já referidas. De acordo com Reich, isto torna os adolescentes mais propensos a desenvolverem personalidades reacionárias. Tal análise revela a importância de uma libertação sexual plena, socialista e anticapitalista.