Resgatar o planeamento

Na época neoliberal, a palavra planeamento tornou-se um tabu. É frequente vermos propostas, mesmo tímidas, neste sentido serem imediatamente rotuladas de ilógicas por contrariarem o sempre eficiente mercado, ou mesmo acusadas pelos menos sérios de quererem emular a União Soviética. No entanto, qualquer projeto para uma sociedade decente terá que incorporar o planeamento da economia segundo objetivos sociais e ecológicos, pelo que é necessário furar o senso comum e fazer este debate.
O planeamento, concebido no abstrato, faz referência à direção consciente e ex ante da atividade económica em função de objetivos pré-definidos, que podem ser de diversa ordem. Ele é compreendido como antítese do que Pat Devine chama de «forças de mercado», ou seja, a articulação espontânea e ex post de decisões individuais de capitalistas motivadas pelo lucro próprio. A alocação de recursos decorre da combinação descoordenada destas decisões individuais e descentralizadas, sendo por isso muito difícil antever os seus resultados ou orientá-la para satisfazer objetivos de natureza social ou ecológica, por exemplo.
Nenhuma sociedade operou puramente neste estado; o «mercado perfeito» é apenas uma construção teórica; os mercados reais inspirados nesta ambição são eles próprios uma criação política, logo o resultado de intervenção pública, por exemplo, na instauração da divisão de classe, direitos de propriedade e consequente ordem legal que os possibilita. No entanto, o que Marx chamava de «anarquia da produção» é a força motriz de uma economia capitalista, embora possa ser mais ou menos temperada nas configurações de economia política concretas. Além disso, são o paradigma ideológico de referência para organizar e avaliar a atividade económica. É neste contexto que a noção de planeamento assume um papel importante como instrumento de combate e emancipação.

Variedades de planeamento

Apesar de operarem num enquadramento de mercado, as economias capitalistas têm incorporado também elementos de planeamento, em maior ou menor intensidade e variando em função das geografias ou do contexto histórico. Sabemos pelo trabalho de autores como Ha-Joon Chang que a maioria dos países capitalistas desenvolvidos, senão todos, recorreram à intervenção forte do Estado no sentido de fomentar setores considerados chave para o seu desenvolvimento, embora prescrevam hoje políticas neoliberais aos outros.
Será difícil encontrar governos hoje em dia sem algum tipo de política industrial, mais ou menos robusta, às vezes até levada a cabo de forma inconsciente. Ela pode ir desde a utilização de recursos ou mecanismos públicos para alterar a estrutura de incentivos sob a qual o capital privado opera, de forma a ‘tornar racional’ a sua orientação para os investimentos desejados – o que a economista Daniela Gabor chamou «de-risking» -, até à intervenção direta do Estado para fomentar, proteger e mesmo criar empresas ou mercados desejáveis (capital de longo prazo, empresas públicas, tarifas aduaneiras, etc.).
Isto torna evidente uma caraterística, ou melhor, uma limitação do planeamento em sociedades capitalistas: o seu sucesso depende de tornar lucrativas as atividades económicas visadas e, em última análise, da vontade dos capitalistas. A política industrial como forma de planeamento contém nela este paradoxo sublinhado por Alexandre Abreu noutro número desta revista: embora permita, no contexto capitalista, desenvolver as forças produtivas e melhorar as condições de vida das classes populares, ela não é mais do que a canibalização de recursos públicos ao serviço da acumulação capitalista, tendo, por isso, um potencial emancipatório contido.
Já conhecemos também vários modelos de planeamento em sociedades pós-capitalistas: o da União Soviética e aqueles que inspirou noutros países, mas também experiências mais idiossincráticas como o modelo jugoslavo. No entanto, o modelo soviético é, sem dúvida, o mais influente e aquele que vem imediatamente à cabeça quando se fala de planeamento – podemos até argumentar que a sua má reputação contaminou a atratividade desta ideia como um todo.
O modelo soviético assentava num planeamento autoritário, centralizado e top-down. Os órgãos centrais do Estado definiam centralmente planos com objetivos de produção para toda a economia, o que, na sua implementação por um exército de ‘planeadores’, implicava infindáveis instruções do que produzir, em que quantidade, que encomendas fazer, que inputs receber e de quem, etc. Num contexto em que as forças de mercado estão largamente ausentes, a tarefa de planear e fazer funcionar a partir do centro uma economia inteira é enorme e deparou-se com imensos problemas, dificuldades, ineficiências e desperdícios, amplamente documentados até por autores socialistas como Alec Nove.
Em todo o caso, o problema do planeamento soviético não é tanto a sua ineficiência, mas sim a ausência de democracia política e de qualquer participação significativa dos trabalhadores na gestão da atividade económica. Este modelo está certamente muito distante daquilo que Marx imaginava quando falava numa «livre associação de produtores».
Um planeamento verdadeiramente socialista deverá contemplar o fim da «anarquia da produção» e a subordinação da atividade económica a objetivos sociais e ecológicos coletiva e democraticamente definidos, o que implica a máxima participação possível de todos os trabalhadores e trabalhadoras em condições de igualdade no controlo e na gestão da vida política, económica e social. 

O caso para um planeamento democrático

Por comparação com as forças de mercado, há dois argumentos a fazer em favor do planeamento: um económico e outro democrático. O planeamento radica numa visão da economia que a concebe como um sistema de provisão ou de cuidado. Pelo contrário, numa economia de mercado, o que produzimos e como distribuímos são o resultado espontâneo da busca individual do lucro e do imperativo da acumulação do capital. Não é verdadeira a máxima neoclássica/liberal de que a combinação de cada procura individual pelo lucro conduza a um resultado social agregado ótimo. Devido aos desequilíbrios de poder económico inerentes numa sociedade capitalista, a alocação de recursos é, na prática, determinada por uma minoria de interesses económicos dominantes.
Isto é problemático, por um lado, porque não nos garante que se tomem as melhores decisões económicas. Como bem sabemos por experiência, isto pode levar economias a concentrarem-se em setores poucos produtivos, precários e especulativos; a gerar imenso desperdício de recursos ou então a produzir excessivamente mercadorias com pouca utilidade; a provocar enormes danos ambientais, pois o lucro não olha às consequências que nele não se repercutem; a concentrar riqueza e, assim, a privar grandes franjas da população de recursos básicos para a sobrevivência.
Ao invés, o planeamento consciente reorienta a economia para aquilo que devia ter sido sempre a sua prioridade: assegurar a satisfação de necessidades. Em princípio, ele pode permitir que cada um e que cada uma tenha os recursos necessários para viver uma vida plena, que o investimento seja concentrado em setores produtivos, geradores de bons empregos e bons salários, que produzamos produtos e serviços úteis e necessários, e que a satisfação das necessidades humanas não destrua o meio natural. Não é isto incomparavelmente mais racional?
Por outro lado, as forças de mercado operam no quadro duma viciosa separação entre o ‘económico’ e o ‘político’, que Ellen Meiksins Wood defende ser uma inovação histórica trazida pelo capitalismo. Definimos uma arena política governada pela soberania popular, mas opomos-lhe uma arena económica insulada de quaisquer pressões ou interferências democráticas. Porque é que há de ser uma minoria de capitalistas a decidir como é que distribuímos os recursos que coletivamente produzimos? À semelhança de outras sociedades passadas, podemos e devemos recuperar a capacidade de decidir coletivamente o que produzimos, em que quantidade, com base em que princípios, em que condições e com vista a que tipo de sociedade. A produção e a atividade económica são uma dimensão essencial da vida de qualquer ser humano e não é legítimo que sejamos privados de as determinar.

O planeamento democrático na prática

Proponho-me agora a discutir um modelo concreto: o planeamento participativo através da negociação coordenada de Pat Devine. A ideia não é que seja visto como modelo a seguir, de forma prescritiva e determinista, pois isso seria ignorar o papel do processo histórico e da agência política. Serve apenas como um exemplo que espero que possa tornar visíveis as vantagens da conceção de planeamento que venho defendendo.
Esta seria uma sociedade autogovernada em que cidadãos, e não apenas produtores, controlam o Estado e a economia, gerindo a atividade produtiva segundo o princípio da subsidiariedade: todos os que são afetados por uma determinada atividade participam igualitariamente no processo de tomada de decisão.
À partida, isto exigiria acesso aos recursos necessários para uma participação efetiva, o que implica duas condições antecedentes: a abolição da propriedade privada dos meios de produção (fim da divisão de classes) e fim da divisão social do trabalho. Ao invés, vigoraria a noção de propriedade social, que o autor contrapõe à propriedade privada, do Estado ou mesmo dos trabalhadores, no sentido em que os ‘proprietários sociais’ seriam os afetados pela determinada atividade económica. Ligando isto à ideia de subsidiariedade, compreendamos a ideia fundamental de governança deste modelo:

propriedade social deve ser definida e as decisões devem ser tomadas ao nível mais local e descentralizado que seja consistente com todos e apenas aqueles que são afetados pela utilização dos bens envolvidos, participando no processo de tomada de decisão relativamente a esses bens. Isto significa que um processo de coordenação negociada teria lugar a todos os níveis, do local ao global, de acordo com as caraterísticas da atividade em questão.
(Devine, 2002, ‘Participatory Planning Through Negotiated Coordination’, Science & Society 66(1))Na prática, o modelo é uma combinação multinível de instâncias de democracia direta e representativa consoante a extensão da propriedade social da atividade em causa, desenhada para permitir, por um lado, planeamento e coordenação central e, por outro lado, a máxima descentralização e participação possíveis. Passo a explicar. Começando pelas empresas, elas seriam controladas não mais pelos capitalistas, mas também não apenas pelos trabalhadores, incluindo também outras empresas do setor, fornecedores, consumidores, moradores das comunidades onde as empresas se inserem, e grupos de interesse, nomeadamente ambientais. Decisões sobre a alocação de recursos e a capacidade produtiva das empresas seriam tomadas por Organismos de Negociação Coordenada, uma espécie de órgãos setoriais num nível acima das empresas onde se reuniriam os representantes dos vários ‘proprietários sociais’ para definir estas grandes linhas, cabendo aos trabalhadores de cada unidade produtiva fazer a (auto)gestão estratégica e quotidiana.
Havendo lugar a mercados no sentido de as pessoas poderem comprar livremente produtos a empresas que, por seu turno, se esforçam para os vender, as forças de mercado cessariam de ser o mecanismo de alocação de recursos, passando a ser determinada ex ante pela deliberação coletiva e democrática dos cidadãos e cidadãs envolvidas de forma a servir os objetivos por eles e elas definidos.
No entanto, o modelo não dispensa um elemento de planeamento central, essencial para garantir a coerência das decisões e a capacidade de alcançar objetivos para a sociedade como um todo. Uma Comissão de Planeamento com caráter técnico, mas que emanaria e recolheria informação dos Organismos de Negociação Coordenada, proporia vários planos a nível nacional possíveis com linhas gerais sobre as prioridades de investimento, alocações setoriais, os recursos disponíveis, os inputs primários, níveis de impostos, prestações sociais e serviços públicos.
Uma Câmara de Interesses produziria relatórios e pareceres sobre os mesmos para um Parlamento Representativo e eleito, que selecionaria o plano a adotar para a sociedade como um todo. O investimento disponível seria depois desagregado para cada Organismo de Negociação Coordenada setorial, que deliberaria sobre como implementar o plano sectorialmente e posteriormente o executaria, vertendo de seguida para as unidades produtivas de acordo com os resultados desse processo de decisão. A eficiência económica e a racionalidade da alocação de recursos seriam garantidas pela informação gerada e trocada entre os vários níveis, assim como pela decisão com base na negociação que tem em conta as preocupações dos vários stakeholders.
Não pretendo argumentar que este seria o modelo ideal – ele levanta certamente várias questões e problemas. Queria antes que pudesse servir como bússola, apresentado aqui não só para concretizar a ideia de planeamento defendida, mas sobretudo para expandir o imaginário do que poderia ser uma sociedade socialista democrática e igualitária. Em todo o caso, penso que fica clara a potencialidade da ideia de planeamento democrático; façamos então o debate.