“Round up the usual suspects!” Os estados de alma como ferramenta política 

Portugal, entre finais de 2024 e inícios de 2025. Tinha acabado de sair o relatório de segurança que, uma vez mais, assinalava não haver relação entre números da criminalidade e imigração. Os números e a realidade contável não deixavam dúvidas, para grande desconforto do alarmismo semeado pela direita e pela extrema-direita. Em discurso desassombrado e especialmente assertivo, o diretor da PJ sublinhou-o, para os menos afoitos à análise estatística: a criminalidade surge inflacionada pelo cibercrime, pela extorsão, pelos crimes de ódio, mas não tem um aumento expressivo e, acima de tudo, não tem qualquer relação com os números da imigração. 

Mas nem sempre a conjuntura da política espetáculo se nutre de factos. Na verdade, na vitrina omnipresente da política do tabloide, os malandros dos factos só estorvam, e a questão é que esses factos destruíam os pressupostos de uma extrema-direita cada vez mais mimetizada por outros quadrantes do espectro político, incluindo o próprio governo. Assim se exemplifica o jogo recorrente, mas perigoso, da utilização dos estados de alma como ferramenta de manipulação política: quando os factos contrariam a disposição mais conveniente, pois tanto pior para os factos!

Talvez por isso, por não se acomodar ao empecilho da objetividade, o então ainda primeiro-ministro defende a lógica securitária do seu discurso com “sentimentos” e “perceções”. Não é preciso que o crime aconteça, basta que as pessoas achem que ele acontece. Subentende-se que este primado da “sensação”, da “perceção”, do “achismo” securitário, validará também quem se “acha” que pode ter cometido os tais crimes, que nunca aconteceram. 

É por isso perfeitamente normal que se encoste à parede uma fileira de pessoas de uma determinada zona, por qualquer “sensação” ou “perceção” que ainda se irá apurar. “Round up the usual suspects” – diria, em Casablanca, o austero Capitão Renault.   

Atrás da cortina

As perceções dão nisto. Projetam no coletivo a marca do individual, anulando a diferença e submergindo qualquer juízo no bolo do falso unanimismo. Dá-se validade a uma “perceção” na esfera limitada que é a bolha mediática, ou nas redes da mais direta e familiar proximidade. A perceção limita-se ao que o olhar alcança e, como diz o povo, o que os olhos não veem o coração não sente. As perceções não se universalizam fora de uma lógica de poder, nem se propagam sem a força de uma hegemonia, que a faça valer como se fosse única e inúmera. Por isso um imigrante racializado não tem perceções mediatizáveis – ele é percecionado, não perceciona!

Justifica-se, também por isso, que redes de tráfico humano, a exploração da agricultura intensiva ou o novo trabalho à jorna que é o capitalismo de plataformas pouco figurem neste jogo. Perdem-se ou ocultam-se na “perceção” do medo do diferente ou na imersão do indivíduo na “sensação” da insegurança, alimentadas pelas consequências da pobreza extrema e da segregação urbana – as causas escondem-se atrás das “perceções”. Não importa que estas pessoas, aquelas pessoas, vivam exploradas em regimes de “cama quente”, em processos de degradação absoluta, fora de uma economia política de “perceções” consequentes. Importa apenas a notícia que projeta o crime, que amplifica e universaliza a agressão ou o roubo. Passa a contar apenas o desconforto deste ou daquele indivíduo quando passa na rua onde “eles” estão, na loja onde “eles” trabalham e que canalizam o incómodo para uma narrativa etnocêntrica que a imprensa tabloide regurgita.  

Contra factos, ressentimentos

Certo é que o discurso da segurança e do medo se revela politicamente eficaz, mesmo num país com muito baixos índices de criminalidade. Essa eficácia é tão evidente que chega a ser difícil apontar a contradição e pôr o dedo na ferida do dissenso: o tal país com números de criminalidade continuamente baixos, o mesmo país frequentado por hordas de turistas e por milhões de pessoas cativadas por ambiente seguro e praias douradas, é expressivamente cativável por forças políticas que reforçam precisamente o contrário. Sublinho o plural: forças políticas. Nutridas pelo sensacionalismo de uma imprensa dominante, como pelo ambiente pouco saudável das redes sociais, direita e extrema-direita cada vez mais se afirmam como aliadas na disposição populista que é a cavalgada das “perceções”.  

Não é, reforce-se a evidência, um fenómeno nacional. A politização das sensações veio para ficar, com meios reforçados e com processos de captura de opinião muito difíceis de contrariar. Os estados de alma são ferramentas políticas que, contra factos, cavalgam ressentimentos, elegem Trump e Meloni e, no caminho, riem-se da degradação espetacularizada de um oligarca multimilionário que, com movimentos de calculada pantomina, acena aos holofotes com uma saudação nazi. Escudado no nacionalismo radical, o célebre MAGA mantém a sua eficácia no uso manipulatório das “sensações”. As mais mesquinhas, mas também as mais tremendamente eficazes. Não sabemos se a ópera bufa em que se transformaram as instituições da UE terá alguma vez condições para mimetizar a MAGA em MEGA. Mas veja-se como hoje, na escalada da retórica armamentista, a solução está lá: a exploração da irracionalidade do medo.

Há formas de mapear esta política de estados de alma e o medo é justamente uma das coordenadas possíveis. É uma das perceções favoritas na abordagem manipulatória das disposições do “povo”.

Politização das paixões 1: maquiavelismos sem Maquiavel

Há séculos atrás, já Maquiavel alertava para a consideração das paixões no espaço do xadrez político. E elegeu precisamente o medo como uma das paixões prevalecentes nas disposições que mobilizam a ação popular. O povo é uma turba dispersa, tão incontrolável quanto os elementos da mais bravia natureza. Esta dispersão é feita de paixões, de estados de alma, de devaneios contraditórios e de circunstâncias que se revelam tão perigosas quanto imprevisíveis. O Príncipe – que não é necessariamente o delfim de uma determinada monarquia, mas um governante, um Estado ou uma forma de poder – deverá ser um agregador da vontade coletiva. No tempo de Maquiavel e de Lourenço de Médicis, tal vontade coletiva é materializável nos apetites de uma burguesia em confronto com a ordem feudal, mas pode bem ser, em qualquer outra época, a de um grupo social, uma corporação, uma classe profissional. 

É aqui que intervém a virtude de um governo, sempre em interação com a sorte, elemento inultrapassável na leitura de Maquiavel. A sorte agiliza a chegada ao poder, mas não permite a sua conservação. É preciso que o governante tenha sorte, mas a sorte não basta. Só uma “astúcia afortunada” garantirá o que interessa. As paixões populares são tão bravias e tão imprevisíveis como os elementos naturais, pelo que a astúcia é fundamental para construir barreiras, diques e muralhas que ordenem ou canalizem tais disposições tempestuosas. Politizar as paixões é canalizá-las. Ou, na visão estratégica do pensador florentino, unificá-las numa paixão prevalecente: o medo. 

O medo é, realmente, uma das mais manipuláveis paixões, uma vulnerabilidade irresistível para o sentido de autoconservação do afortunado governante. A vantagem de “um certo sentimento de insegurança” é que está vedado a qualquer objetividade estatística, assim como a “política de portas abertas, mas não escancaradas” é bem passível de corresponder às meias tintas de quem, na prática, alimenta a fobia da diferença.   

Politização das paixões 2: grandes triunfos do neoliberalismo

Finda a promessa eurocêntrica/ ocidental da constância do progresso nas chamadas “democracias liberais”, no período dos “gloriosos 30”, o recuo austeritário do Estado Social construiu-se sobre o que Daniel Bensaïd designou por “individualismo concorrencial”. Este é um dos alcances ideológicos do capitalismo, que complementou a lógica de otimização do lucro com uma superestrutura que o ramificou em todas as direções. Ele naturalizou-se e intensificou-se nas lógicas do empreendedorismo, do bem-estar, de todas as formas de um viver cada vez menos em comum, distribuindo-se pelos pequenos espaços privatizados das cidades que nos vão permitindo habitar. 

No círculo do indivíduo não entra qualquer abordagem de classe. Os estados de alma, esculpidos à escala individual, projetam o sentimento de um só na ilusão agregadora de muitos, multiplicando pequenos ressentimentos privados que a hipercomunicação da rede social acolhe e legitima. A aliança sistémica entre a direita tradicional e a extrema-direita encontra condições ideais no individualismo neoliberal e na sua politização de estados de alma.

É interessante verificar, na panóplia de ânimos politizados, a recorrência da “moderação” como suposta virtude de uso instrumental no circuito que caracterizamos. Forças partidárias, antigas ou recentes, atropelarem-se para assumirem o seu lugar no resguardo dessa convidativa poltrona. Das cedências a um mercado parasitário da habitação, que não se ousa afrontar, até poses mais ou menos recalcadas para fotos em embaixadas de países genocidas, velhas e novas tendências da esquerda vão engrossando esse coro de suposta razoabilidade. Burguesa e comodista, a velha virtude da moderação funciona como uma espécie de palavra-passe, a partir da qual se dá por válido o pior dos reacionarismos. 

Para além da soberania do medo

Hoje, o facto é que esta mesma politização de estados de alma ameaça atuar hiperbolicamente contra todos os instrumentos da razão, todos os bastiões de liberdade e de crítica. Verificamos isso mesmo quando um Estado, em toda a sua arrogância colonial e imperialista, ensaia um exercício de censura a Universidades fora das suas fronteiras, enquanto exerce um poder arbitrário e desmedido contra o seu próprio sistema educativo e científico. A América de Trump é campeã da projeção mais oportunista dos pequenos ressentimentos à esfera da decisão política, catapultando o obscurantismo ao púlpito da soberania inquestionada. A ignorância autorizada e a cloaca das redes sociais são gasolina e habitat de uma espécie de pesadelo coletivo vivido em direto e a cores. 

Pródiga na legitimação de um egoísmo sem confrontação, alimentada pela ilusão do consenso da bolha mediática ou do comentário na notícia de jornal, a politização das perceções age pelo avesso da legitimação democrática. Daí que um dos desafios inultrapassáveis do nosso tempo seja a nova conjugação entre inteligência e ânimo, entre razão e sentimento, que possa levar de vencida a exclusividade do medo ou o império do ressentimento. 

Ir além de estados de alma não é evitá-los, nem menosprezá-los, nem sequer submetê-los ao estreito critério da tecnocracia. É apenas dar-lhes ferramentas democráticas, elevando-os para além da manipulação e da propaganda. Autorizá-los, ou seja, dar-lhes poder coletivo.