Sem memória não há cravos 

Repensar as sociedades pós-coloniais tem sido um exercício constante para militantes antirracistas. As estruturas sociais e institucionais, herdadas pelos processos de Escravatura e Colonialismo, corroboram as práticas racistas que perpetuam desigualdades seculares. 

É a partir da premissa – é necessário descolonizar a sociedade – que convido à reflexão acerca dos 50 anos do 25 de abril, uma data marcadamente simbólica e transformadora da sociedade portuguesa e não só.  No entanto, é de elementar importância afirmar que, a Revolução dos Cravos, é uma data que tem na sua origem vários eventos que possibilitaram a sua concretização, em 1974. Algumas pessoas, ao longo das décadas, circunscrevem este evento como apenas um facto da realidade portuguesa, sem referir e homenagear todas as pessoas que contribuíram para a celebração das cinco décadas da liberdade.  

Recorro ao pensamento de Amílcar Cabral para sustentar a reflexão – “Conscientes do facto de que a libertação dos nossos países depende principalmente da acção dos nossos próprios povos, da sua unidade, da sua capacidade de organização e de preparação para a luta, estamos firmemente decididos a desenvolver o nosso combate”. (in Guiné-Bissau: Nação africana forjada na luta)

Sabemos que, do chão comum criado pelos e pelas combatentes pela liberdade no continente africano, despoletaram as mais radicais imaginações, que nos relembram que o empobrecimento das populações africanas foi a mais engenhosa façanha imperialista-burguesa para condicionar a organização de massas. É deste processo endémico do capitalismo que nasceu e se desenvolveu o extrativismo e a expropriação dos territórios africanos para a dominação colonial. Este é o início da grande história falseada sobre as ocupações europeias, costuradas no rebranding colonial e racista, denominada erroneamente de “descobrimentos”Assim, tal como Portugal domina a arte da calcetagem, o regime colonial português burilou e esculpiu na pedra mentiras, ocultando todos os crimes de genocídio dos povos indígenas que lá viviam, recusando-se também a discutir todos os efeitos nefastos que causou às populações africanas. 

Os vários tipos de resistências presentes nos escritos de Cabral conduzem-nos para as estratégias políticas, sociais e culturais que estão na origem da derrota e do derrube do regime fascista português. Nos anos 70, o grupo musical “Voz de Cabo Verde” interpretou uma letra composta por José Carlos Schwarz, grande músico, compositor, poeta e combatente pela liberdade guineense, com o título “Combatentes P.A.I.G.C”, no álbum denominado “Independência”. Cito as primeiras palavras desta canção – “Si tuga lêmbradurba sê governu(se os tugas se lembrarem derrubamos o seu governo)/ Viva combatente P.A.I.G.C”

A afirmação – o 25 de abril nasceu em África- é um bom ponto de partida para derrubar a invisibilização que tentam inculcar, como forma de negação da raiz materialista do processo do 25 de abril de 1974. Esta confrontação de narrativas torna-se importante, já que este exemplo – como tantos outros, presentes na literatura, nas músicas e nas histórias orais dos países africanos – confirma que a celebração do 25 de abril deve ser pensada e enquadrada como um projecto amplo e agregador. Neste sentido, a declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, decretada pelos e pelas combatentes pela liberdade no dia 24 de setembro de 1973, deve ser sublinhada como um dos actos que mais contribuiu para que, poucos meses depois, o regime fascista fosse derrubado em Portugal. 

Se olharmos para os processos coloniais que dizimaram e destruíram as civilizações existentes antes das ocupações europeias no continente africano, encontramos sempre, segundo a lente das teorias ocidentais, triunfos retumbantes das potências colonizadoras. As histórias de resistência e os processos colectivos de luta não constam nos livros e no imaginário colectivoeuropeu. Deste modo, é oportuno referir que as lutas de libertação pela emancipação dos territórios ocupados pelas potências colonizadoras não foram convenientemente debatidas nem tratadas, nos diversos discursos e documentos ocidentais elaborados em torno do tema.  

É provável que, para uma grande maioria de pessoas, figuras como Amélia Araújo, Miriam Makeba, Josina Machel, Titina Silá Amílcar Cabral, Thomas Sankara, Franz Fannon, e tantas outras, que lutaram contra a Escravatura e o Colonialismo, tenham surgido já numa fase mais adulta das suas vidas. Se é que alguma vez surgiram. Principalmente quando estamos organizadas em movimentos sociais de esquerda, este detalhe é muito importante. É motivo suficiente para questionar: qual foi a razão pela qual a esquerda ocidental não abraçou convenientemente a luta anti- racista nas sociedades pós-coloniais?

Há factos que ainda hoje continuam a estar fora da memória mais imediata. Muito se fala sobre as celebrações do 25 de abril, mas poucas pessoas saberão que, a 25 de abril de 1988, a então Presidente da Assembleia Popular da Guiné-Bissau e combatente pela liberdade guineense, Carmen Pereira, discursou na Sessão solene comemorativa da Revolução dos Cravos.  

Facto é que crescer na diáspora africana é sinónimo de confrontações diárias entre a esfera privada e pública. Por um lado, as músicas e as personalidades presentes nas nossas casas contam uma história de resistência e de luta dos povos africanos. Por outro, as figuras presentes no espaço público retratam a desumanização a que estes e estas foram sujeitos.

A cultura é algo reconstrutor da personalidade e da identidade das pessoas negras, sobretudo daquelas que vivem nas diásporas. Podemos, então, afirmar que essa cultura é um veículo importante e um ponto de disputa para as narrativas que aqui trago para a reflexão. A disputa cultural em torno da memória permite-nos fazer leituras críticas da condição das pessoas negras, que nasceram e/ou cresceram nas várias diásporas africanas. Podemos olhar para este processo histórico como a continuação de acontecimentos passados que, de algum modo, coloca-nos à prova de outra forma, com mais ou menos avanços, mas sempre em conexão com as formas de herdar esse passado. 

Novamente, recorro a uma música para falar sobre a história das pessoas negras e africanas em Portugal. Ildo Lobo, cantor cabo-verdiano, na música Alto Cutelo, empresta a sua voz para narrar a história das pessoas trabalhadoras cabo verdianas contratadas e exploradas pelas principais indústrias,-  bai pa Lisboa ê bendi sê terra/ metâdi di preço/ Ali tá trabadja na tchuba na bento/na frio/ Na CUF, na Lisnave e na JPimenta “  ( Para ir para Lisboa vendeu a sua terra/ a metade do preço/ Para trabalhar à chuva, ao vento ao frio, na CUF, na Lisnave e na JPimenta).

Poderia mencionar outras tantas canções e músicas, que são autênticas revoluções cantadas, com uma enorme sofisticação sonora e lírica, mas este exemplo é bastante ilustrativo sobre o empobrecimento a que as pessoas negras estão sujeitas há várias décadas, bem como acerca da desumanização dos seus corpos, para servir à exploração laboral. Na história deste país continuam ausentes estas pessoas, que contribuíram e continuam a contribuir para o desenvolvimento económico, social e cultural de um Portugal supostamente democrático. 

Pensar na história das grandes mobilizações das pessoas trabalhadoras, sem mencionar todo racismo estrutural que deixaram estas pessoas e as suas famílias sem direitos, sobretudo direitos de cidadania para as gerações que nasceram nas décadas de 80 e 90, são formas de não se fazer justiça à realidade dos movimentos sociais, com consequências que perduram até ao presente. Falamos de gerações que são consideradas estrangeiras no país onde nasceram e cresceram.

O reconhecimento, o direito à memória e as homenagens por fazer têm constituído um debate árduo em Portugal, porque as narrativas coloniais e neocoloniais que colocam a tónica na hospitalidade e nos brandos costumes portugueses, continuam a perpetuar desigualdades múltiplas e violências quotidianas.

Em nenhum espaço de luta são aceitáveis declarações de intenções vazias, que nunca serão concretizadas. Ninguém é figurante da sua própria vida, nem será um adereço simbólico para que os outros se aproveitem das suas lutas. O combate e a confrontação de narrativas são um campo político que nunca deve ser abandonado e, nessa medida, reivindicamos o direito à memória e ao reconhecimento, porque a luta contra o racismo estrutural nada mais é do que um combate ao capitalismo e às suas estruturas.

Para que os nossos cravos não murchem, devemos tirá-los da lapela e alimentar as suas sementes com as lutas que ainda nos faltam aprofundar.