
Sheikh Jarrah: de Jerusalém para o mundo
Artigo de Alda Sousa e Tatiana Moutinho.
Ao longo dos últimos anos (décadas?) que os meses de maio ficam sistematicamente marcados por investidas contra o povo palestiniano, seja na Faixa de Gaza, seja nos territórios ocupados da Cisjordânia. Maio assinala a Nakba (a Catástrofe) que se iniciou em 1948 com a criação do estado de Israel e que, só nesse ano, obrigou ao deslocamento forçado de 700000 palestinianos e palestinianas. Uma vez mais, o último mês de maio não foi diferente. Ou terá sido?
#SaveSheikhJarrah – Um movimento social que uniu a resistência palestiniana…
Desde a sua criação e expansão colonialista que parte da política de limpeza étnica levada a cabo por Israel ao longo de mais de sete décadas passa por uma política de deslocamentos forçados, expropriações e despejos. Os bairros de Jerusalém Oriental não são excepção e, em abril último, o tribunal de Jerusalém rejeitou um recurso contra mais um despejo no bairro (hoje mundialmente conhecido) de Sheikh Jarrah, ordenando que oito famílias abandonassem as suas casas até 2 de maio. A disputa nos tribunais israelitas, com o lado israelita a argumentar que teria direitos que remontam à era otomana, é espúria: Jerusalém Oriental é considerado território ocupado desde 1967 pelo que, à luz do direito internacional, está fora da jurisdição da potência ocupante. O bairro de Sheikh Jarrah é composto maioritariamente por famílias palestinianas que aí se instalaram em 1948, quando foram expulsas das suas casas em vários lugares da Palestina histórica.
A decisão do tribunal israelita foi o rastilho que incendiou os protestos em Jerusalém e deu fôlego à campanha #SaveSheikhJarrah, liderada pelos irmãos gémeos de 23 anos, Mohammed e Muna al-Kurd. Fazendo uso das redes sociais, e mesmo perante fortíssima censura de plataformas como Facebook, Whatsapp, Instagram, Twitter ou YouTube, esta campanha conseguiu unir os palestinianos. A sua eficácia deve-se ao seu foco naquilo que é a essência da experiência do povo palestiniano: os deslocamentos forçados.
Também no inicio de Maio, e ainda antes do final do Ramadão, no coração da Cidade Velha, a polícia israelita atacou por três vezes em quatro dias a mesquita al-Aqsa, um dos locais sagrados do Islão.
Toda esta sucessão de acontecimentos em Jerusalém contagiou palestinianos um pouco por toda a Palestina: desde as cidades (ditas) mistas de Israel, como Haifa, Lod e Nazaré – onde vivem mais de dois milhões de palestinianos na condição de cidadãos de segunda ou de terceira, resultado da política de apartheid levada a cabo por Israel – até Nablus, Hebron e um pouco por toda a Cisjordânia. Na Faixa de Gaza o Hamas exige a retirada das forças de ocupação da mesquita al-Aqsa e do bairro de Sheikh Jarrah até 10 de Maio, exigência esta que foi ignorada. E assim se inicia o lançamento de rockets a partir de Gaza, amplamente propalada pelos meios de comunicação mainstream como se de (mais) um “conflito Israel-Hamas” se tratasse, ignorando propositada e olimpicamente a mobilização do povo Palestiniano por todo o território, e que ultrapassou as próprias fronteiras da Palestina, com milhares de palestinianos da diáspora a concentrarem-se nas fronteiras da Cisjordânia e do Líbano.
O sucesso do activismo palestiniano desesperou e enfureceu as autoridades israelitas, resultando numa violenta campanha para o suprimir. Num contexto em que a liderança política palestiniana é, no mínimo, frágil- facto que o estado de Israel aproveita para conseguir preciosos apoios ao nível da comunidade internacional – confrontar-se com uma resistência social unificada era o pior que podia acontecer ao estado sionista, ainda para mais mergulhado numa crise de governação nos últimos anos. O lançamento de rockets a partir de Gaza foi, uma vez mais, aproveitado e instrumentalizado por um governo de Benjamin Netanyahu, cada vez mais fragilizado no plano interno, para uma resposta violentamente desproporcionada sobre Gaza, em nome de um suposto “direito de auto-defesa”, como lhe chamou Augusto Santos Silva. Um “direito” que se saldou em mais de 250 mortos (67 dos quais crianças) e em mais de 58 mil pessoas desalojadas.
… e conquistou o mundo
A nível global, assistimos também à maior onda de solidariedade desde sempre. Manifestações gigantescas sucederam-se e continuam a suceder-se um pouco por todo o mundo, de Detroit a Londres, de Jacarta a Melbourne, de Paris a Buenos Aires, mostrando a força do movimento popular.
Nos EUA é cada vez mais forte, visível e audível, a presença de organizações judaicas anti-sionistas (Jewish Voice for Peace, Codepink, etc.), ao mesmo tempo que as massivas manifestações de rua tiveram a participação de milhares de jovens. Certamente que a experiência do movimento Black Lives Matter foi uma fonte de inspiração para estas mobilizações.
E acções concretas de oposição à política colonialista e de apartheid emergem um pouco por todo o lado. Estivadores dos portos italianos, primeiro em Livorno e depois em Nápoles recusam-se a carregar armamento com destino a Israel, o International Dockers Council, o maior sindicato de estivadores do mundo, lança um apelo ao boicote do transporte e carregamento de armas com destino a Israel e, já depois de anunciado o cessar-fogo a 21 de maio, estivadores em Durban (África do Sul) ou em Oakland (Estados Unidos da América) recusaram-se a operar navios vindos de Israel. Já no Reino Unido, em maio e em Leicester, activistas ocuparam uma fábrica de drones, subsidiária dum fabricante de armas israelita (um protesto que durou quatro dias e acabou com a detenção de quatro pessoas) e, já em junho, um outro estaleiro em Manchester (num protesto que culminou com a detenção de mais três activistas). Estes protestos contra a Elbit system foram promovidos pelo grupo Acção Palestina do Reino Unido e inserem-se na lógica do BDS (Boicote, desinvestimento e sanções), mostrando a urgência e a força deste movimento.
A nível da comunicação social talvez se esteja a assistir a uma mudança no discurso dos órgãos mainstream. A título de exemplo, a primeira página do jornal israelita Haaretz, com os rostos de todas as crianças palestinianas assassinadas na ofensiva de maio contra Gaza, é retomada pelo New York Times, numa página interactiva, com os rostos, nomes e curtas biografias de cada uma das 67 crianças palestinianas e das duas crianças israelitas (uma das quais residente numa aldeia árabe israelita desprovida de abrigo anti-bombas) mortas em maio.
É preciso que tudo mude, para que tudo seja diferente
A maioria dos governos ocidentais continuou a sua política de apoio a Israel e ao regime de Apartheid, com o estafado argumento segundo o qual “Israel tem o direito de se defender” . A posição do governo português é no mínimo vergonhosa, tanto mais que a 29 de Novembro de 2012 na Assembleia Geral da ONU, o governo de Passos e Portas, votou a favor do reconhecimento do estatuto de Estado Observador não-Membro à Palestina. E se o governo de Macron, no seu crescendo de islamofobia e de criminalização dos movimentos sociais, proibiu as manifestações de solidariedade com a Palestina (que mesmo assim se realizaram), houve governos que tomaram posição, como foi o caso da Irlanda, e parlamentos que avançaram com propostas de boicote económico efectivo a Israel (com uma proposta de lei que proíbe a importação de bens a partir dos territórios ocupados), como no caso do Chile. Também em Portugal o Bloco fez idêntica proposta no Parlamento, estando ainda em fase de discussão. A sempiterna posição de apoio a Israel norte-americana, agora pela voz de Biden, foi contestada no Congresso por vários deputados democratas (Alexandria Ocasio-Cortez e outros), ao proporem resoluções para que os EUA cessem de imediato a venda de armas a Israel. Ainda, congressistas como Ayman Pressley e Cori Bush trouxeram para dentro do Congresso a associação entre a luta pela libertação negra e o movimento de libertação palestiniano, um argumento historicamente defendido por activistas como Angela Davis ou Malcolm X.
Netanyahu começou esta nova operação sobre Gaza para tentar ganhar força internamente e desviar as atenções da crise na formação do governo. Mas teve de aceitar o cessar-fogo, já que a situação se deteriorou. Não só percebeu que não ia ganhar a ofensiva de Gaza como também que o movimento de solidariedade dentro dos Estado de Israel poderia criar-lhe ainda mais dificuldades.
O novo governo de Israel, conduzido pelo ultranacionalista de direita Naftali Bennett, insere-se na continuidade do anterior. Só na primeira semana após a tomada de posse, foram aprovadas novas construções em colonatos judeus na Cisjordânia, algo que não acontecia há mais de seis meses. E enquanto as manifestações de solidariedade com Sheikh Jarrah continuam a ser reprimidas, a extrema-direita israelita manifestou-se impunemente junto às portas de Damasco (entrada para a Cidade Velha de Jerusalém) com gritos de “morte aos árabes”. Na manifestação estavam presentes três deputados israelitas.
Mas há novos elementos de esperança.
No plano interno, mantém-se o levantamento popular que culminou com a greve geral de 18 de Maio, convocada pelo próprio movimento popular e à qual se juntaram representantes políticos. Esta greve reveste-se de um profundo significado. Talvez tenha sido a primeira, desde 1936 (quando ainda não havia estado de Israel e a Palestina estava sob mandato britânico), como demonstrou que havia uma base comum para a solidariedade entre todo o povo palestiniano, apesar da sua diversidade e diferenças. Não deixou também de ser um “recado” à autoridade palestiniana não só por ter adiado as eleições marcadas para 22 de maio, como para lhe provar que cada vez mais palestinianos não estão dispostos a passarem-lhe cheques em branco. Não será exagero afirmar que a(s) liderança(s) palestiniana(s) começaram já um novo processo de recomposição.
No plano internacional, pela primeira vez na sua história, o Conselho da ONU sobre Direitos Humanos aprovou, a 26 de Maio último, uma comissão de inquérito às “presumíveis violações de direitos humanos por parte de Israel desde 13 de Abril de 2021, tanto nos territórios ocupados (incluindo Jerusalém Oriental) como dentro de Israel”. A sua importância deverá ser mais do que simbólica.
Sobretudo, e para que tudo possa ser diferente na Palestina, é fundamental dar visibilidade e apoio a todo o movimento popular e social que está a emergir, tanto na Palestina histórica como fora dela. É necessário denunciar e rejeitar toda e qualquer tentativa de equiparar as críticas a Israel a anti-semitismo e é instrumental forçar uma mudança, de facto, das posições dos governos (sobretudo os ocidentais) sobre a causa palestiniana. O reforço das políticas de boicote, desinvestimento e sanção a Israel, promovido pelo movimento BDS, reveste-se de particular importância neste aspecto em particular. Trata-se de boicote económico, claro. Mas sobretudo de condenar a política de ocupação e de Apartheid do estado de Israel e de contribuir para o seu isolamento político.