No ano passado, sentimos uma pequena onda de esperança vinda de França, onde uma coligação de esquerda – o Nouveau Front Populaire (NFP) –, liderada por um partido irmão do Bloco, La France Insoumise (LFI), mas juntando Verdes, Comunistas e Socialistas, venceu as eleições legislativas. Apesar de Macron não lhe ter dado a oportunidade de formar governo, não deixa de ser notável que a esquerda radical, num contexto internacional de refluxo, se tenha conseguido afirmar como força maioritária. Embora esta vitória assente em bases frágeis, relacionadas com as caraterísticas do sistema eleitoral e político francês, e ainda que se possa disputar a radicalidade desta coligação, a verdade é que a LFI, tendo sido fundada em 2016, se tornou, em poucos anos, numa força que disputa o governo. É, por isso, do nosso interesse estudar e analisar esta experiência num momento tão difícil.
A história da LFI é indestrinçável da do seu líder, Jean-Luc Mélenchon. Foi ele que abandonou o Parti de Gauche, que o próprio havia fundado em 2009 após uma cisão com o Parti Socialiste, para a fundar o «movimento» La France Insoumise com vista a apoiar a sua candidatura às eleições presidenciais de 2017. Nessas eleições, contra todas as expetativas, ficou em quarto lugar com quase 20%, ultrapassando os 7 milhões de votos e ficando largamente à frente dos Socialistas e dos Comunistas.
No entanto, nas legislativas que se seguiram, conseguiu apenas eleger 17 deputados, apesar de ter ficado em quarto em número de votos, novamente à frente das outras forças de esquerda. Nas eleições municipais de 2020, teve outro débacle, expressando as tradicionais dores de um partido recente com fraca implantação territorial.
As presidenciais de 2022 afiguraram uma nova possibilidade para a LFI. Os resultados foram ainda melhores que em 2022, tendo Mélenchon ampliado a sua votação em termos absolutos e ficado a menos de 2 p.p. do segundo lugar, falhando a segunda volta por muito pouco. Nas legislativas que se seguiram, federou as Esquerdas na NUPES (Nouvelle Union Populaire, Écologique et Sociale), conseguindo um destacado segundo lugar e 127 deputados. A unidade foi fundamental para a esquerda ampliar a sua presença no Parlamento devido ao funcionamento do sistema eleitoral. A proeza foi repetida em 2024, desta vez sob o Nouveau Front Populaire (NFP), tendo ganhado em número de deputados, mas perdido em número de votos para o Rassemblement National (RN) de Le Pen.
Este artigo visa refletir sobre os sucessos e as contradições do percurso da LFI, apoiando-se na minha observação e leituras, mas também com o precioso contributo de 2 camaradas da LFI com quem falei, Damien Saley e Sylvie Herody (D&S), que tiveram a gentileza de responder a algumas questões, permitindo também generosamente a sua citação neste artigo. A ambos agradeço.
Populismo de esquerda e «revolução cidadã»
Vários observadores notam como na LFI o vermelho deu lugar a outras cores mais anódinas, como A Internacional, cantada no fim dos comícios, deu lugar à Marsellaise (hino nacional), e como as referências à esquerda e à classe trabalhadora foram removidas do discurso para dar lugar ‘às gentes’ («les gens») e ao povo.
Explicam também como isto advém de uma viragem intelectual do próprio Mélenchon, pelo menos desde a publicação do L’Ere du Peuple em 2014. Um ano antes, teria conhecido os famosos proponentes do populismo de esquerda, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – mantém, inclusivamente, contacto com a última até hoje, sendo possível até vê-la em eventos da LFI.
A literatura documenta a influência destes autores, assim como das experiências de populismo de esquerda na América Latina e em Espanha, muito especialmente, o Podemos. Considerando a noção de esquerda desacreditada e confusa para o público, procede a evitar utilizar significantes que lhe são associados (como «classe»), abdicando igualmente de quadros de perceção da sociedade clássicos da esquerda («luta de classes»), com o objetivo de construir um bloco político maioritário e interclassista.
Perante a fragmentação política e cultural da classe trabalhadora, a ideia é unificar este sujeito político plural, ultrapassando as divisões de classe, género e etnia, e dotando-o de consciência política de si mesmo. Como me explicam Damien e Sylvie, a ideia é «colocar o povo no centro da ação política e fazer dele um verdadeiro ator». A segunda etapa desta estratégia é criar um inimigo, contra quem o povo («le peuple» / «les gens») se arregimenta para lutar contra: a oligarquia («oligarchie» / «la caste»), seja ela política, mediática ou financeira. A ideia de um povo maioritário explorado por uma oligarquia minoritária privilegiada constitui a mundivisão dos insubmissos e é um elemento permanente no seu discurso, considerado como um fator importante para explicar o seu sucesso eleitoral e em construir uma base de apoio, que é, de facto, interclassista, embora com algumas limitações.
No entanto, os meus interlocutores explicam que isto não é tudo:
«O que distingue a LFI do resto da esquerda europeia e a torna tão bem-sucedida é a sua rutura com a social-democracia, que falhou em todo o lado ao aceitar as regras do capitalismo liberal. Rompemos com este modelo económico, que prejudicou as classes trabalhadoras, que estão no centro do eleitorado da esquerda. O fracasso de François Hollande entre 2012 e 2017 permitiu-nos passar a outra coisa, a uma esquerda mais combativa que rompe realmente com o modelo económico dominante.» (D&S)
De facto, a LFI construiu um célebre programa – «L’avenir en commun» («o futuro em comum») –, que é bastante ambicioso, abrangente e detalhado. Não sendo anticapitalista, é radical e bate de frente com vários dogmas do pensamento económico dominante: controlo de preços, controlo público de setores estratégicos, planeamento ecológico e industrial, mudanças substantivas na UE e até a defesa duma nova Constituição.
De facto, a LFI apresenta logo como primeiro pronto do programa, mas também muito frequentemente nos seus discursos políticos, a ideia de que é preciso uma nova Constituinte de cidadãos escolhidos por sorteio para criar uma nova Constituição que funde a 6ª República, virando a balança do presidencialismo para o parlamentarismo de forma a devolver poder ao povo. Tudo isto faz parte do slogan insubmisso: «la révolution citoyenne» («a revolução cidadã»). Conforme explicam os camaradas:
«chamamos-lhe a Revolução dos Cidadãos: “cidadãos” porque pretendemos tomar o poder através das urnas e não nas ruas (o que significa que não somos classificados como extrema-esquerda) e “revolução” porque queremos pôr um fim radical ao sistema atual.» (D&S)
Esta rutura com o centro-esquerda, assumindo radicalidade no programa e no discurso, pode ter sido decisiva para recuperar confiança do eleitorado à esquerda, conseguindo corporizar sentimentos de desconfiança e raiva dominam as nossas democracias, ao apresentar-se como uma alternativa antissistema e popular.
«Mouvement gazeux» ou «parti-oignon»?
Jean-Luc Mélenchon insistiu sempre que a LFI não era um partido, mas sim um movimento, o que visa não apenas esquivar-se da conotação negativa associada aos partidos, mas também refletir diferenças significativas do ponto de vista organizativo. Famosamente, o líder insubmisso utilizou a expressão «mouvement gazeux» («movimento gasoso») para caraterizar a estrutura fluida, informal e pretensamente horizontal da LFI.
De facto, os estatutos do partido são parcos quanto à sua estrutura formal, reforçando o seu caráter ágil, eficaz e orientado para a ação. Para começar, para alguém se juntar ao partido basta inscrever-se online de forma instantânea, não implicando quotização. O partido apoia-se em «grupos de ação» que são fundados autonomamente por grupos de militantes, e ratificados centralmente, numa base local, profissional ou temática. Os meus interlocutores apontaram para a existência de mais de 6 000 grupos. Os estatutos do partido exigem a divisão dos grupos quando reúnem mais que 12 elementos por, alegadamente, a mobilização ser mais fácil e também para evitar a formação de clivagens e grupos de competição internos. Aliás, os estatutos proíbem explicitamente a formação de grupos de oposição ou fações.
A estrutura carateriza-se também pela ausência de estruturas e dirigentes intermédias/os, pela indefinição de canais hierárquicos, e pela ausência de processos de decisão e de canais de responsabilização claros. Além da enorme rede de grupos de ação, existem 3 órgãos nacionais: a «Coordenação de Espaços», que coordena os grupos de ação em torno das prioridades nacionais do partido, o «Conselho Político», que concebe a orientação política e cuja maioria dos membros emanam do órgão anterior, e as «Assembleias Representativas», que reúne esporadicamente com militantes escolhidos por sorteio, mas sem poder de emitir resoluções vinculativas para a coordenação do movimento.
O sociólogo Manuel Cervera-Marzal passou 36 meses a fazer trabalho de campo na LFI e produziu talvez o estudo académico mais completo sobre o partido – Le populisme de gauche – Sociologie de la France insoumise (2021, La Découverte). Para descrever a organização, utiliza a metáfora «parti-oignon» («partido cebola»), no sentido que, em vez de uma estrutura piramidal, na qual a autoridade parte de cima mas desce por vários escalões até à base, a LFI é melhor descrita por uma estrutura horizontal concêntrica, no sentido em que o líder, uma espécie de primus inter pares, e o seu núcleo controlam de facto o partido enquanto as bases estão à margem afastadas do centro de poder, mas também sem se relacionarem com ele duma forma hierárquica.
Segundo ele, são uma espécie de militantes «sem deveres nem direitos» que gozam de muita autonomia na sua ação, desde que respeitem o programa, mas que, na prática, não têm capacidade de intervir nos processos de tomada de decisão do partido – uma «desorganização organizada» para centralizar, de facto, o poder no núcleo do líder e permitir, assim, agilidade e eficácia na ação política. Como explicam os meus interlocutores, ao contrário dos partidos tradicionais, «o funcionamento interno está inteiramente voltado para a ação e não para preparar o próximo congresso».
Explicaram também que existe uma plataforma digital, a Action Populaire, em que se partilha informação e todos os eventos. Cervera-Marzal explica que é prática comum fazerem-se votações para todos os militantes por esta via, que na prática acabam sempre aprovadas por haver apenas um texto (o da direção), criticando esta «via plebiscitária».
Os meus interlocutores, no entanto, não se reveem na ideia de uma ausência de estruturação, defendendo este modelo que permite autonomia local sem, na sua opinião, se perder coerência nem capacidade de mobilização, e que faz com que o partido funcione virado para a ação, sem se perder tempo com os ‘mecanismos partidários clássicos’.
«Atualmente, a France Insoumise está estruturada a todos os níveis […]. Temos mais de 6.000 grupos de ação (grupos locais compostos por pelo menos um par de co-líderes e uma terceira pessoa) em todo o país. Cada grupo é livre de levar a cabo a sua própria ação no terreno, participando ao mesmo tempo nas grandes campanhas coordenadas pelo movimento, como a atual campanha pela 6ª República. Existe uma carta dos grupos de ação, que deve ser respeitada para evitar excessos por parte de certos grupos. O objetivo é manter uma verdadeira coerência na ação e na comunicação de todos os grupos em todas as regiões, e é isso que torna a LFI tão forte ao lado dos partidos tradicionais, onde as secções locais podem ter um discurso diferente do nacional». (D&S)
O mesmo estudo que mencionei refere que os grupos de ação locais têm muito pouco financiamento, que fica retido sobretudo nas funções centrais do partido, sendo que a maioria dos recursos é dedicada à comunicação, assim como é a área na qual trabalha uma grande parte dos assalariados do partido. De facto, os meus interlocutores reconhecem que o partido prioriza as redes sociais e plataformas digitais, mencionando várias métricas de seguidores e engajamento, dimensão que consideram essencial para a mobilização e para o sucesso eleitoral.
No entanto, referem também outros mecanismos de campanha considerados fundamentais em que o partido tem investido nos últimos anos: o ‘porta a porta’, utilizado em muitas circunscrições e considerado muito importante por permitir «um contacto direto com as gentes»; o jornal do partido L’Insoumission, que permite emitir reações rápidas; e o recente Institut La Boétie, uma espécie de think tank do partido, que associa vários intelectuais para produzir estudos com vista à educação popular.
Tempos difíceis pela frente?
Apesar da vitória do NFP nas últimas legislativas, o RN venceu o voto popular por uma boa margem e é difícil imaginar que não se reforce nas próximas legislativas. Entretanto, as contradições internas do NFP vieram ao de cima com o rompimento do PS, que tem suportado o governo marioneta imposto por Macron. O frentismo foi essencial para a subida da LFI e da esquerda em França, mas só resultou porque foi liderado por uma força radical, a LFI, que conseguiu imprimir-lhe um programa ambicioso. Veremos se esta convergência à esquerda é reeditável.
Entretanto, a agressividade dos media quanto à LFI intensificou-se, tendo sido rotulada repetida e mentirosamente de ‘antissemita’ devido à denúncia determinada que tem feito contra o genocídio em Gaza. O partido sozinho vale neste momento cerca de 10% nas sondagens e Mélenchon é um dos líderes com maiores taxas de rejeição em França.
Isto é um grande risco para a LFI – sendo um partido recente e com fraca implantação popular, depende criticamente da perceção pública do líder. Como é hábito, o partido aposta fortemente nas presidenciais, vista como «a eleição mais importante para nós, porque é a única que pode mudar a vida das pessoas» (D&S).
Os meus interlocutores reconhecem, no entanto, que foi «um erro» o partido nunca se ter interessado muito pelas eleições locais, visto que a implantação local é, para eles, fundamental. Assinalam uma mudança importante: «pela primeira vez, concebemos uma estratégia para as próximas eleições autárquicas de 2026: consiste em apresentar listas no maior número possível de municípios, de modo a termos o maior número possível de eleitos locais» (D&S). Referem que há 9 eixos programáticos e que o objetivo é construir em conjunto com as comunidades locais o futuro das suas terras, através de «grandes consultas cidadãs».
Apesar de tudo, consideram também que o partido fez um bom trabalho de formação de quadros e que há um conjunto de homens e mulheres próximos de Mélenchon capazes de tomar a dianteira, certamente mais que nos outros partidos, dizem, o que será necessário visto que o líder anunciou que se retiraria dos comandos do movimento, focando-se no trabalho intelectual no Institut La Boétie. Enumeram Mathilde Panot (presidente do grupo na Assembleia Nacional Francesa), Manuel Bompard (coordenador nacional), Clémence Guetté (vice-presidente da Assembleia Nacional Francesa, vice-presidente do Institut La Boétie), Manon Aubry (presidente do grupo The Left no Parlamento Europeu) e Rima Hassan (eurodeputada).
Da nossa parte, desejamos o maior sucesso aos nossos camaradas de França para as lutas que se avizinham e aprenderemos certamente com a sua experiência.