Tempo para ter tempo

Tempo livre. Tempo livre. Tenho de escrever um texto sobre tempo livre…

Camarim do CCB. Paredes brancas. Um texto sobre o tempo de criação… Luz branca.

Artificial. Sem luz natural. Sobre o futuro do tempo-livre… Um ruído

imperceptível… Tac, Tic, Vrum, Bzzz, zia… Do tempo de criação…Será alguém a

martelar? Será o equipamento estragado? Será uma espécie de tortura?

Comunicado.

Actores ao palco para colocação de microfones. Obrigada.

Subo. Coloco o microfone. É ensaio corrido. Só entro na cena 5. Tenho tempo de

escrever até entrar em cena.

Tempo livre… Tempo livre… Como é que se escreve sobre tempo livre sem tempo

livre? O ruído continua! Tac, Tic, Vrum, Bzzz… Já estão na cena 3, na próxima cena

tenho de me ir aproximando do palco… Não me posso esquecer do gorro de cena.

Melhor colocá-lo à porta.

Tempo-livre… A nobreza era por defeito ociosa.

Já estão na cena 4. Tenho de ir. Estamos quase a estrear e ainda não recebemos o

pagamento do primeiro mês de trabalho. O gorro! Volto atrás. Corro para não falhar a

minha entrada.

“O homem põe e Deus dispõe. E depois ninguém se atreve!”

É agora. Entro em cena. Saio de cena. Pronto, agora já só volto para a cena 10.

Entre a 5 e a 10

Tenho tempo.

Entre a 5 e a 10

Tenho tempo livre.

Entre a 5 e a 10. 5 e 10. 15

Tenho tempo livre livre…para escrever

15 dias sem folga…

Telemóvel a vibrar.

Whatsapp. Grupos de whatsapp.

Tenho de publicar o comunicado da associação.

15 dias sem folga… Exausta.

“O Inverno há-de passar”

Acordo! É a minha deixa! Corro!

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O tempo livre não é igual para todas as pessoas, nunca foi, nem nunca será. Antes da revolução industrial, o tempo de um camponês ou artesão era orientado pelas tarefas, a separação entre o trabalho e a vida era inexistente, sendo o tempo livre adaptável, imprevisto, intermitente e maleável, traduzindo-se em pausas para conversar ou descansar durante o tempo de trabalho e atividades pouco determinadas. Por oposição, o ócio era a condição de quem não trabalhava, um privilégio da nobreza que vivia uma vida desafogada, com tempo para ler, ir ao teatro, frequentar salões, viver uma vida em sociedade. Após a revolução industrial assistimos à reorganização do trabalho e das relações laborais que, inevitavelmente, fazem emergir novas noções de tempo livre e de ócio. O trabalho à tarefa é substituído pelo trabalho definido pelo tempo que ocupa. Ou seja, na sociedade moderna o tempo livre é visto como oposição ao tempo de trabalho, e o ócio começa a perder prestígio. O mundo modifica-se e a sociedade capitalista refina-se transformando o tempo em dinheiro e, atualmente, ninguém passa o tempo, mas antes, gasta o tempo, numa lógica de consumo, segundo a gíria popular “tempo é dinheiro”. Esta lógica impele-nos, enquanto seres humanos, a sermos cada vez mais eficientes e eficazes na produção e no consumo (pedras basilares do capitalismo). Se o ato de criação é um ato que necessita de tempo (tempo livre, tempo de tédio, tempo de imaginação), mas sabemos que nem toda a gente dispõe desse tempo precioso, recurso essencial ao ato de criação, como é, hoje em dia, gasto o tempo livre?

Se fizermos scroll numa rede social temos um retrato: culto da imagem e do corpo, velocidade, networking, autoajuda, dinheiro fácil, moda e beleza, novidades, tendências, tecnologia, investimentos. Se olharmos para o ecrã do telemóvel deparamo-nos com Apps variadas: Apps para gerir melhor o tempo trabalho, Apps para ter uma alimentação saudável, Apps para alcançar uma mente sã e um corpo são, Apps para aprendermos outras línguas, Apps de finanças, Apps de investimentos, Apps de auxílio ao dia-a-dia, Apps de produtividade, Apps para regular o ciclo menstrual, Apps de poupança, Apps de passos, Apps e mais Apps. Todas estas publicações e Apps mais não são do que uma continuação do tempo de trabalho e uma forma de aniquilação do tempo livre, empurrando-nos para uma gestão eficiente e eficaz da vida e denunciando, concomitantemente, os interesses da sociedade na idade da App. Assim, a ocupação do tempo livre tornou-se, com o neoliberalismo, simplória, sem sentido, supérflua e ilusória e alienou-nos da nossa capacidade de imaginar e criar. Não passamos de algoritmos a tentar sobreviver, de forma individual, à selva em que o mundo se transformou. 

A capacidade de criar é inata ao ser humano e não podemos permitir que seja abafada pelas lógicas de mercado e pela pressão da eficiência e da eficácia. Como podemos reivindicar o direito ao tédio? Como podemos conquistar o direito ao tempo de imaginar? Como podemos reivindicar o direito a não produzir? Como podemos contrariar a sociedade da eficiência e eficácia? Temos de exigir tempo, tempo de tédio, tempo de imaginação, tempo de criação, porque o tempo não pode ser uma condição de quem tem dinheiro. A precariedade onde as pessoas vivem deve ser o motor para a luta pelo direito ao tédio, à imaginação e à criação. Temos de dizer não à eficiência e eficácia que nos impõem. Temos de ter a capacidade de romper com o passado, onde só alguns tinham direito ao ócio e à fruição cultural. Saiamos do algoritmo que nos ego-centra e dos ecrãs de telemóvel que nos encandeiam, olhemos para o mundo que nos rodeia e juntemo-nos. A cultura e o coletivo são a alavanca para se combater o neoliberalismo que nos torna egoístas, individualistas e concorrentes, por isso é que nos cortam o direito a criar, por isso é que nos monopolizam o “tempo livre” e nos isolam. Se não começarmos hoje, o tempo livre pleno, sem exigências, sem objetivos, sem pressão, no futuro, será uma miragem. Como pode uma pessoa ter tempo para ________ quando tem de apanhar um autocarro às 4h da manhã para limpar casas? Como pode uma pessoa ter tempo para ________ quando o dinheiro não é suficiente para pagar as contas? Como pode uma pessoa ter tempo para ________ quanto o seu trabalho é precário e intermitente? Como pode uma pessoa ter tempo para ________ quando o estado lhe vira as costas? Como pode uma pessoa ter tempo para ________ quando é pressionada a gerir os seus recursos de forma eficiente e eficaz? Está na altura de lutarmos por termos verdadeiramente tempo-livre. 

*Este texto foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico, entre ensaios, idas a palco, mudanças de figurinos, num camarim de uma grande sala de espetáculos, ansiosa por passar o recibo-verde que me garante o pagamento das contas mas que não me garante o tempo para imaginar. Desencantada com o estado da coisa e consciente que não estou só. A luta pelo direito ao tempo é e será coletiva.