Vivemos uma crise da ordem de género. A ideia de que “homens são assim” e “mulheres são assado” está a perder força: vidas trans, não-binárias e queermostram todos os dias que o género não é destino biológico, mas construção social. Essa exposição desestabiliza uma das ficções centrais da masculinidade dominante: a de que é natural, inquestionável e imutável.
A masculinidade hegemónica é um sistema de poder instável
A masculinidade hegemónica, como analisou Raewyn Connell, não é apenas um conjunto de traços comportamentais; é uma posição de poder que se organiza por exclusão e que se sustenta em hierarquias, onde o homem – cis, hétero, branco – vem sempre em primeiro lugar. E mantém-se tanto pela violência direta como pela normalização da humilhação, pelo riso cúmplice diante da piada transfóbica, pelo silêncio perante a agressão. Muitos homens não agridem, mas beneficiam de um sistema que o faz por eles. Esse benefício, discreto, mas persistente, ajuda a cimentar o poder.
Paradoxalmente, essa masculinidade é instável: vivida como algo precário, que exige reafirmação constante. As lutas feministas, queere o reconhecimento de existências trans abalam essa estrutura. Expõem o género como performance, não essência. Judith Butler mostrou que não há género “antes” da norma – é a norma que o fabrica, através da repetição. Quando essa repetição falha, o sistema entra em curto-circuito. Gayle Rubin, por sua vez, descreveu o sistema sexo/género como uma máquina que transforma diferenças biológicas em hierarquias sociais. A ordem de género, construída sobre uma suposta naturalidade, exige vigilância constante para se manter. A existência de pessoas trans e não-binárias destabiliza essa norma e mostra precisamente o contrário: que o género não é fixo, que há desvios, reinvenções, recusas – e, por isso, alternativas.
É essa ameaça – a possibilidade real de desnaturalização do género – que coloca a masculinidade em crise. Quando a sua autoridade deixa de parecer inevitável, surgem o medo, o ressentimento e, muitas vezes, a violência. A transfobia, neste quadro, não é apenas expressão de preconceito, mas uma resposta defensiva à fragilidade exposta do cisheteropatriarcado. E funciona: permite reafirmar fronteiras, manter privilégios, recentrar o “homem a sério” como padrão.
A política do medo como ferramenta para disciplinar os corpos
Essa instabilidade tem sido habilmente explorada pela extrema-direita. Wilhelm Reich, em A Psicologia de Massas do Fascismo, já mostrava como o autoritarismo cresce em contextos de repressão sexual, ansiedade coletiva e apelos por ordem. Famílias patriarcais e masculinidades rígidas produzem sujeitos submissos, mas também propensos ao ódio contra quem desafia essa norma. A cruzada contra a chamada “ideologia de género” – um conceito fabricado nos anos 1990 por setores reacionários da Igreja Católica e hoje usado por partidos e governos neofascistas – converteu-se numa estratégia global. O termo não descreve uma realidade concreta, mas organiza o medo. Funciona como palavra-fantasma: transforma a existência de pessoas trans numa ameaça difusa à infância, à nação, à civilização.
Como lembra Butler, trata-se de uma política do medo transformado em raiva coletiva – uma raiva que pode ser mobilizada para restaurar fantasias de ordem. A transfobia, neste contexto, cumpre uma função pedagógica: ensina quem deve ser descartado, quem pode ser protegido e quem merece ser punido. Ensina a desconfiar da liberdade e a desejar segurança, custe a quem custar. Mas esta pedagogia da exclusão não atinge apenas pessoas trans. Afeta todas as que saem da norma. Produz suspeita sobre mulheres cis que não
aderem ao ideal de feminilidade. Ridiculariza pessoas não-binárias. Força homens a reafirmar ainda mais afincadamente a sua masculinidade. Em todos os casos, atua como ferramenta para disciplinar corpos, regulando quem pode existir com dignidade.
O discurso antitrans não é apenas ruído ideológico: legitima violência, orienta políticas públicas, molda os limites do aceitável. Quando a extrema-direita instrumentaliza perspetivas “antigénero”, não está apenas a provocar disputas culturais. Está a tentar restaurar uma ordem simbólica abalada – e fá-lo com eficácia. Essa retórica oferece à masculinidade em crise duas promessas simultâneas: por um lado, a ilusão de que o seu lugar na hierarquia será recuperado; por outro, a possibilidade de canalizar o ressentimento para alvos vulneráveis. É esta pedagogia da raiva que transforma exclusão de pessoas trans em coesão política – e a transfobia em capital eleitoral.
Ao combater esse “fantasma”, a extrema-direita atinge múltiplos alvos. Reforça o patriarcado, alimenta o autoritarismo, disciplina corpos e sexualidades. Articula dois regimes cúmplices: o neoliberalismo, que fragmenta, precariza e transforma vidas em recursos descartáveis; e o neofascismo, que responde com disciplina, exclusão e apelos a uma ordem identitária. Ambos dependem de fronteiras simbólicas rígidas – e a transfobia oferece-lhes uma ferramenta eficaz para mobilizar o medo, segmentar populações e justificar violência institucional. A masculinidade normativa, que encontra aqui um terreno fértil, não estrutura só o género – organiza também o trabalho, o consumo e a obediência. No capitalismo neoliberal, corpos que escapam à norma tornam-se incómodos: não rendem, não encaixam, não obedecem. A transfobia ajuda a manter essas margens operacionais. Como escreve Shon Faye, a precariedade trans não é acidente: é política deliberada que se manifesta no acesso à saúde, ao trabalho, à habitação.
A transfobia é parte de um sistema que oprime todas as pessoas
A ofensiva antigénero tornou-se política de Estado em vários países. Na Hungria, Orbán criminalizou a “ideologia de género” e proibiu a discussão sobre identidades trans nas escolas. Na Polónia, criaram-se zonas “livres de ideologia LGBT”. Em Itália, Meloni governa em nome de “Deus, pátria e família”, enquanto ataca sistematicamente direitos queer. No Brasil, o bolsonarismo transformou a pauta antigénero no eixo da sua guerra cultural, com ataques a escolas e perseguição a ativistas. Nos EUA, Trump regressou à presidência em 2025 com ordens executivas que exigem o uso de “sexo biológico” nas instituições federais, restringindo o reconhecimento legal de identidades trans.
Portugal não está imune: o crescimento do discurso de ódio é acompanhado por agressões físicas, propostas legislativas regressivas e pelo uso político da transfobia como elemento agregador de um projeto identitário autoritário. O Chega ergue o antigénero como bandeira eleitoral, explorando o pânico moral e o ressentimento masculino. E os números confirmam o impacto: 347 crimes de ódio contra pessoas LGBTI+ em 2023 (mais 38% face ao ano anterior). Em 2024, segundo a ILGA-Europa, crimes de ódio atingiram máximos em 35 de 54 países – com alerta específico para Portugal. Em 2025, o ECRI denunciou o aumento acentuado do discurso de ódio em Portugal – dirigido a pessoas LGBTI+, mas também a pessoas migrantes, ciganas e negras –, atribuindo responsabilidade direta a políticos de extrema-direita.
A transfobia, portanto, não é um desvio, mas parte integrante de um sistema que fabrica fronteiras entre o aceitável e o abjeto. Pessoas trans, em particular mulheres trans, são marginalizadas e expulsas da esfera do humano, retratadas como ameaça, piada, fraude. Quando essa desumanização atinge o limite, as suas vidas deixam de ser entendidas como dignas de cuidado e as suas mortes como dignas de luto. É o que vemos nos transfeminicídios, expressão extrema da exclusão social que se abate sobre as mais vulneráveis: mulheres trans racializadas, migrantes, empobrecidas. Casos como o de Gisberta Salce, em Portugal, refletem esta prática sistemática.
Nesse processo, surgem também alianças perigosas. Parte do feminismo institucionalizado, ao negar a legitimidade das identidades trans, reforça a mesma ordem de género que sustenta a masculinidade hegemónica. As chamadas TERF (feministas radicais trans excludentes), ao defenderem fronteiras fixas do que é ser mulher, reproduzem a exclusão que a masculinidade em crise exige para se manter no poder. Não por acaso, este discurso alinha-se cada vez mais com forças conservadoras e neofascistas, formando uma frente comum contra a autodeterminação de pessoas trans.
O feminismo torna-se assim terreno de disputa: entre uma visão que vê nas pessoas trans uma ameaça e outra, interseccional, que reconhece a liberdade de todas como interdependente. Esta última percebe que a transfobia não é exceção à ordem de género – é o seu mecanismo de funcionamento. Não serve apenas para excluir algumas, mas para disciplinar todas. Serve, em última instância, à manutenção da masculinidade no centro do poder social.
Expandir as possibilidades do género: a luta trans é feminista e de classe
Ainda assim, há vidas que desafiam essa norma. Homens trans constroem outras formas de masculinidade, recusando a lógica da dominação. Pessoas não-binárias expandem as possibilidades do género. Mostram que o binário não é inevitável e que outras formas de existência são possíveis. E ao fazê-lo tornam visível o que o sistema tenta esconder: que o género, tal como o conhecemos, é uma imposição – e por isso, pode ser desfeito.
A luta trans é feminista e de classe. Combater a transfobia não é apenas uma questão de direitos individuais – é um gesto político de recusa a uma ordem que depende da exclusão para se sustentar. É reconhecer que a violência contra pessoas trans é parte de um sistema que oprime todas. E que a luta por justiça de género passa pela desestabilização da masculinidade dominante.
Nomear a transfobia como sintoma de uma masculinidade em colapso não é desculpa, mas denúncia. Porque, enquanto essa masculinidade se radicaliza para sobreviver, há quem escolha desafiar, reinventar e resistir. É com essas vidas que está o futuro.