Transição Ecológica e outras transições necessárias: por novas formas de conhecer e gerir a Casa Terra

A transição ecológica pressupõe mudanças sistémicas nas formas pelas quais nos relacionamos com o território, com os elementos geofísicos, com a bioesfera e com todos os outros seres vivos com os quais convivemos neste maravilhoso sistema de organização ecológica.

A transição ecológica implica respeitar os princípios que regem esta organização ecológica, logo, agir sobre o território com consciência e de modo consequente e responsável, o que envolve transformações na configuração do sistema produtivo e das premissas em que este se baseia no cenário do capitalismo. 

Não obstante as transformações da chamada “economia verde” que passa pela reciclagem de materiais, ou pela substituição de formas de energia fóssil poluentes, por formas de energia renováveis e limpas, ainda estamos muito longe das metas definidas pelo Pacto Ecológico Europeu (2019), nomeadamente a de reduzir 50% das emissões de Gases com efeito de estufa em 55% até 2030. Para além disso, essas transformações não são suficientes se apenas substituirmos formas de energia para continuarmos a produzir e a sobrecarregar o território, nomeadamente, o solo; se não protegermos a água no subsolo e continuarmos a sobreconsumi-la; se não respeitarmos a biota, a fauna e a flora que equilibram os ecosistemas. Ou seja, a transição ecológica não é compatível com o consumo e a produção de massas, nem com a sociedade aculturada nestes padrões de vida. A transição ecológica não é compatível com a ilusão falaciosa do crescimento económico que depende da extração e manipulação de elementos naturais, vistos como recursos que nos servem e não como elementos vivos de ecosistemas, sendo, pois, insustentável. 

Assim, carecemos de mudanças de paradigma em diversos setores da atividade económica e da administração dos territórios, mudanças que dependem de uma transformação cultural profunda, no modo como concebemos a bioesfera, ou aquilo a que comumente se chama natureza, e nos relacionamos com ela. Javeau (1998) explicava os factos sociais ou as culturas como realidades opostas à natureza, chegando a afirmar que a cultura é a nossa natureza enquanto seres humanos. Esta perspetiva é coerente com o afastamento gradual da espécie humana relativamente a outras espécies animais, vegetais e ao meio físico; afastamento ao qual se alia um autoconceito baseado na superioridade desta espécie. 

Tal afastamento e categorização binária, como todas as disjunções geradas pela modernização – sujeito vs. objeto; mente vs. corpo; campo vs. cidade; trabalho vs. lazer; vida privada vs. vida profissional, partem de um pensamento simplificador que pretende dominar a realidade (Morin, 2008[1991]). A história da modernidade é uma sequência de processos de dominação social e de dominação do meio físico, do qual nos destacamos como singularidade racional, com intuito de dominar a nossa própria natureza, ao serviço dos imperativos da ideologia dominante no modelo socioeconómico industrial. “Fazer regredir o animal pulsional” foi o foco das instituições modernas edificadas sobre o poder disciplinador que funciona não só por inculcação de normas, por dominação ideológica, mas também por incorporação. Os “corpos dóceis” e “corpo máquina” socializaram-se, tendo como referentes o espaço humanamente construído, e transformado, e as suas regras e pressupostos de utilidade, valor e dever, distanciando-se, pois, de qualquer ligação biológica ao mundo físico e à bioesfera (Fernandes, 2021, p.131; Foucault, 1975).

Só a intervenção socioeducativa e cultural pode promover mudanças efetivas que minimizem a atual calamidade climática e ambiental, pois só estas abordagens podem transformar estas conceções antropológicas e das relações dos seres humanos com toda a vida na Terra. É preciso que os decisores políticos, a várias escalas, instituam e apoiem medidas para incitar à reflexão, ao questionamento, e informar sobre perspetivas alternativas e modos de as concretizar, motivando a capacidade de agência dos seres humanos para conservar os elementos e processos naturais que garantem as condições de vida e de equilíbrio dos ecosistemas.

À escala europeia, algo está a ser desenhado neste sentido, a Recomendação do Conselho Europeu nº 2022/C 243/01, de 6 de junho de 2022, coloca a aprendizagem para a transição ecológica e desenvolvimento sustentável como prioridade das políticas de educação e formação. Desta recomendação, destacamos duas orientações, a primeira refere-se aos aprendentes:

“Proporcionar aos aprendentes, desde a educação pré-escolar, oportunidades para compreender e valorizar o mundo natural e a sua biodiversidade e para interagir com eles, bem como para desenvolver um sentimento de curiosidade e de maravilhamento e aprender a agir em prol da sustentabilidade, de modo individual e coletivo” (p.5).

Entendemos que a interação com a bioesfera e o meio físico são fundamentais, sendo condição para instigar a curiosidade e o maravilhamento. Julgámos este último particularmente valioso, num mundo que carece de valorização da conexão emocional das crianças aos seus espaços, particularmente aos espaços verdes e ainda mais ao meio natural, aliada ao desenvolvimento livre da sua imaginação e pensamento simbólico.

A segunda, remete para os educadores: 

“Reconhecer que todos os educadores, independentemente da sua disciplina ou setor de educação, são educadores para a sustentabilidade que têm de ajudar os seus aprendentes a preparar-se para a transição ecológica” (p.6).

Quantos educadores se identificarão com esta premissa?

Quantos sentem que têm condições para a levar a cabo?

Esta recomendação está em linha com o quadro de referência europeu em matéria de competências para a sustentabilidade (2022), o Greencomp, que se baseia na metáfora da colmeia para ilustrar os domínios de saberes essenciais ao desenvolvimento de modos de vida sustentáveis. Nesta metáfora, as abelhas representam os atores individuais e coletivos que tomam medidas em prol da sustentabilidade, estes atores dependem das flores que simbolizam as competências de previsão de futuros sustentáveis, incluindo a literacia sobre o futuro, a adaptabilidade e o pensamento exploratório. Outros elementos fundamentais deste sistema são o néctar e o pólen que representam as competências de pensamento complexo, incluindo o enquadramento de problemas, a abordagem sistémica e o espírito crítico. Os valores a preservar e que dão estrutura às paredes da colmeia são a valorização da sustentabilidade, a promoção da natureza e o apoio à equidade.

Nesta linha, a educação ambiental não pode limitar-se ao ensino da ecologia ou à promoção de mudanças culturais apenas comportamentais. Note-se que ecologia, do grego oikos + logos significa o conhecimento da casa planetária, enquanto economia – oikos + nomos são as leis ou regras de gestão dessa casa. Portanto, o conhecimento da casa tem que ser a base da sua gestão – a ecologia deve guiar a economia. Esta viragem permitirá centralizar a vida nas efetivas necessidades, ao orientar-se pelo valor de uso dos produtos e serviços e não pelo seu valor de troca, pois assim as necessidades não podem ser infinitas (Taibo, 2017).

Concordamos com Philippe Layrargues (2006) quando afirma que “não se trata apenas de estabelecer uma nova relação entre os humanos e a natureza, mas dos humanos entre si, e destes com a natureza” (2006, p.72). Por outras palavras, “só é possível proteger a natureza se, ao mesmo tempo, a sociedade se transformar”, se for estabelecida uma nova ordem social, que não seja mediada pelo capital (Layrargues, 2006). Há mais de 40 anos, Jacinto Rodrigues (2021 [1979]) já defendia que “urbanismo, modo de trabalho e processo produtivo, organização social, pedagogia e cultura são vetores de uma realidade global” (p.9). Assim, a ecologia como filosofia é “uma construção permanente e auto-avaliativa” que pretende contrariar “uma totalidade fechada”.

Importa também destacar que os problemas ambientais não resultam das ações de uma humanidade abstrata. A questão ambiental é eminentemente uma questão de justiça social. Não há uma distribuição igualitária dos lucros retirados pela exploração dos recursos naturais nem dos seus custos e danos ambientais e sociais. Os dados do mais recente Relatório sobre Mudança Climática (2023) do Painel Intergovernamental para a Mudança Climática mostram que apenas 10% dos agregados familiares são responsáveis pela produção de 35% a 45% da totalidade de emissões de gases com efeitos de estufa, enquanto 50% dos que emitem menos contribuem apenas para 13% a 15% (p.5). Ao mesmo tempo, são as pessoas e regiões que menos contribuem para as emissões aquelas que mais sofrem as consequências das alterações climáticas:

“O aumento dos fenómenos meteorológicos e dos fenómenos climáticos extremos expôs milhões de pessoas a uma insegurança alimentar aguda e reduziu a segurança da água, com os maiores impactos adversos observados em muitos locais e/ou comunidades em África, na Ásia, na América Central e do Sul, nos países menos desenvolvidos, nas pequenas ilhas e no Ártico, e, a nível mundial, para os povos indígenas, os pequenos produtores de alimentos e os agregados familiares com baixos rendimentos. Entre 2010 e 2020, a mortalidade humana causada por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes superior nas regiões altamente vulneráveis, em comparação com as regiões com vulnerabilidade muito baixa” (p.6).

Estes dados permitem evidenciar quão interdependentes são a vulnerabilidade humana e do ecossistema. As pessoas em situações de maior vulnerabilidade são e serão as mais expostas aos impactos das alterações climáticas e ambientais.

Referências

Comissão Europeia (2019). Pacto Ecológico Europeu. https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:b828d165-1c22-11ea-8c1f-01aa75ed71a1.0008.02/DOC_1&format=PDF

Comissão Europeia, Centro Comum de Investigação (2022). GreenComp, Quadro europeu de competências em matéria de sustentabilidade. Serviço das Publicações da União Europeia. https://data.europa.eu/doi/10.2760/780994  

Fernandes, L. (2021). As lentas lições do corpo. Contraponto. 

Foucault, M. (2013/1975). Vigiar e Punir – Nascimento da prisão (10ª edição). Edições 70.

Intergovernmental Panel on Climate Change (2023). Climate Change 2023 – Synthesis Reporthttps://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/report/IPCC_AR6_SYR_SPM.pdf  

Javeau, C. (1998). O Estudo do Social. In C. Javeau, Lições de Sociologia. Celta. 

Layrargues, P. (2006). Muito além da natureza: educação ambiental e reprodução social. In C. Loureiro, P. Layrargues, & R. Castro (Orgs.) Pensamento complexo, dialética e educação ambiental (pp.72-103). Cortez. 

Morin, E. (2008/1991). Introdução ao Pensamento Complexo [5ª edição]. Instituto Piaget. 

Recomendação do Conselho Europeu nº 2022/C 243/01, de 6 de junho de 2022 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32022H0627(01)

Rodrigues, J. A. (2021/1979). Ecologia. Editora Exclamação.

Taibo, C. (2017). En defensa del decrecimiento. Sobre capitalismo, crisis y barbarie. LA CATARATA.