Uma “Erasmus Student Network” à nossa maneira

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Artigo de Beatriz Farelo.


Ter um destino é não caber no berço onde o corpo nasceu, é transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma.” Miguel Torga

A experiência do Erasmus é das poucas realidades institucionais europeias que teve um efeito na vida dos jovens. Beatriz conta uma dessas experiências e mostra como uma aprendizagem militante pode criar internacionalismo e interligar lutas comuns.

Uma frase escrita por alguém desconhecido nas paredes do meu quarto na residência onde estou a viver.

Uns meses em Erasmus podem significar, também, uns meses de descanso do ativismo que fazemos em casa. Mas é mesmo isso que queremos? Estar longe de casa nunca é fácil. E chegar a um país como a República Checa, com uma língua eslava totalmente diferente das línguas latinas e anglófonas a que nos habituámos e com uma cultura política muito diferente da nossa, com antecedentes históricos em muito diferentes dos nossos, qualquer plano de tarde vai parecer mais confortável que entregar o nosso tempo a participar na vida política da cidade, ou mesmo do país. Mas o que é a vida de ativista senão o constante confronto com situações desconfortáveis?

Praga nunca seria apenas a cidade onde iria estudar e beber as famosas cervejas checas durante os 6 meses pelos quais se prolongaria o meu Erasmus. É uma cidade que teve a sua Primavera em 1968 e se vestiu de Veludo em 1989. Uma cidade culturalmente tão mais diferente do que aquilo que uma simples visita turística nos consegue fazer ver e uma vida política proveniente de experiências históricas muito diferentes daquelas a que Portugal nos habituou. Mas quando aquilo que nos move é forte o suficiente, não há barreiras culturais que nos separem.

A minha primeira experiência política na República Checa foi a manifestação da greve pelo clima de 20 de setembro, sexta-feira. Aí conheci o coletivo Univerzity za Klima (Universidade pelo Clima). Travei amizades, troquei contactos e uma semana depois estava numa reunião, sempre com alguém que se voluntariava para me traduzir tudo, onde discutíamos a ocupação da Faculdade de Filosofia no aniversário das revoltas estudantis violentamente reprimidas pela polícia, em novembro de 1989, no mesmo sítio onde Jan Palach, um estudante de Belas-Artes, se autoimolou como protesto face à passividade dos checos aquando da invasão soviética em 1968.

Participei também num bloqueio do Extinction Rebellion (XR). Não entendia rigorosamente nada das ordens policiais e podia abandonar a qualquer momento, mas a emergência climática é muito maior e mais importante que tudo isso. A polícia identificou-nos, mas sobrepuseram-se a isso todos os laços de camaradagem que criámos e as pessoas que conheci. Já não tinha como me sentir sozinha ali.

Em Nuremberga, conheci e troquei ideias e experiências com ativistas dos mais diversos países da Europa. Da Ucrânia a Portugal, era mais o que nos unia do que aquilo que nos separava. À chegada a Praga, falei sobre a experiência de ativismo climático em Portugal, num painel da ocupação dedicado a ativistas estrangeiros. Depois de uma marcha de 15 minutos até à reitoria da minha Universidade, ocupámos o átrio principal e fomos capa de notícia nos jornais checos com palavras de ordem e com o confronto direto que tivemos com o reitor, um candidato à presidência da República Checa que trava acordos com os barões do carvão e financia campanhas negacionistas.

Lutar fora da nossa zona de conforto, até que o mundo seja a nossa zona de conforto para lutar. “É transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma”. Será que era isto que a União Europeia queria? A tão falada troca de experiências? Camaradas, façam bom uso dos vossos Erasmus.

Beatriz Farelo é estudante.