Uma esquerdista radical e um chegano entram num bar…
Inês Sena
Mas não é bem um bar. É uma roulotte à beira-praia que mata a sede às navegantes da lua que se aventuram para longe dos bares do centro turístico. Mesmo esse não passa de uma rua principal conhecida como “a marginal”, o que é uma desonestidade comprovável, já que para além dessa, há ainda uma outra rua paralela ao mar – nem contando com o respeitável passadiço que cobre o areal. Esta roulotte, estacionada sim na verdadeira marginal, serve um conjunto diverso de pessoas mais ou menos jovens, atraídas pela bebida barata.
Já passa bem da meia-noite e tanto a esquerdista como o chegano, se hidratam avidamente com respetivas companhias. À vinda, depois de ter ido comprar mais uma rodada, a esquerdista ouve o grupo do chegano mencionar as FP-25 – as Forças Populares 25 de Abril – e comunica-o com entusiasmo à sua companhia, que acontece ser tão esquerdalha quanto ela. Num ato impulsivo contra a deliberação de grupo, mas manifesto da sua liberdade individual, a esquerdista aproxima-se do chegano e dos seus amigos, e, sem grandes cerimónias, apresenta-se. Diz que os ouviu de passagem e tenta perceber os contornos da sua conversa. Sem grande demora eles identificam-lhe a esquerdice, levando-a a admitir a sua condição. De início trocam umas palavras hostis sobre assaltos a bancos e pais terroristas, mas o jovem chegano, face à abordagem cordial, é coagido a admitir um grau de curiosidade e simpatia protocolar. Só se despedem quando a hidratação já abunda, algumas horas mais tarde, depois de terem satisfeito os requisitos mínimos de faladura, e o conflito de ideias se render ao cansaço mútuo.
As conclusões, tal como as ideias discutidas, não são nada de novo – para além de um racismo subentendido, tímido na sua expressão, envergonhado até – é óbvia a defesa de um liberalismo económico em esteróides. Apesar disso, há a preocupação com o estado dos serviços públicos, que atribui com indignação às políticas “socialistas” e de “extrema-esquerda” dos últimos 6 anos, as carências das quais são vítimas. Neste caso, as posições proferidas por este jovem alentejano, dificilmente refletem a violência do discurso demagógico e inflamável, adoptado pelo partido que diz defender.
A identificação dos partidos à esquerda do PS como perigosos radicais é uma consequência do desvio incremental do espectro político à direita que se tem observado nos últimos anos, e do qual o PS não é de todo inocente. Através da falsa polarização com a extrema-direita, o PS pôde capitalizar com o medo generalizado de um governo de direita com o apoio do Chega, conseguindo assim captar votos do eleitorado de esquerda apesar da contenção orçamental e da aparente indiferença perante as necessidades urgentes de reforço de financiamento dos serviços públicos.
Liberais de todas as cores e de todos os sabores
As eleições já lá vão e as evidências da viragem do PS à direita são inegáveis: a recusa de taxar lucros extraordinários, de aumentar salários face à inflação e de fixar preços para proteger o poder de compra são amostras claras da intenção do Governo de fazer as pessoas que vivem do seu trabalho pagar pela crise energética e pela anunciada espiral inflacionista. Perante o aumento descontrolado do custo de vida, que tanto dá azo ao aproveitamento pelas grandes empresas, o Governo de Costa decide ignorar as desigualdades que se agravam, nunca deixando de priorizar a redução do défice – não vá pôr em causa a sua posição como bom cordeirinho de Bruxelas.
Este descontentamento – fruto das políticas do Partido Socialista – alimenta um sentimento “anti-socialista” que em concelhos rurais e suburbanos ganha uma maior expressão no apoio ao Chega. Nos centros urbanos, por outro lado, e com especial concentração nas zonas com maior rendimento per capita e maiores índices de escolaridade, a IL apresenta-se como a grande novidade da política em Portugal. O alvo do seu confronto ideológico não poderia ser mais claro.
Com um programa de liberalização radical da economia, a Iniciativa Liberal afirma-se preconizando uma originalíssima solução política baseada na supremacia da liberdade individual em oposição direta à ideia de um Estado interventivo e regulador. Apesar de empregar táticas de comunicação próximas de um marketing empresarial jovem e irreverente, a exaltação do agente autónomo – que através do seu mérito empreendedor num mercado misteriosamente auto-regulado encontra a realização da sua liberdade individual – não resulta de nenhuma vaga de inovação ideológica. Tanto o Chega, como o PS e o PSD, com mais ou menos políticas de proteção social, defendem uma ordem social baseada na primazia da atividade do sujeito atomizado diante de dinâmicas orgânicas ao mercado livre.
Com absoluta surpresa para absolutamente ninguém, a defesa das escolhas individuais, a proteção das minorias e o combate às tendências totalizantes são princípios basilares da nossa ação política. As raízes do pensamento liberal – que foram cooptadas erroneamente pelo neoliberalismo como uma arma ideológica ao serviço das classes dominantes – sobrevivem nas nossas ideias e na nossa prática política, onde são confrontadas com a conceção materialista da História.
Aquilo que a IL tenta fazer – naturalizar o neoliberalismo recorrendo a uma essencialização do individualismo como constituinte primário da natureza humana – pinta um quadro onde o que há de vir está irremediavelmente determinado e em que as relações de mercado se sobrepõem a qualquer tentativa de construção de um futuro alternativo. Futuro esse onde as desigualdades sócio-económicas não são vistas como uma inevitabilidade. Traduzir a nossa visão alternativa de futuro em propostas concretas que incorporem o pressuposto de que a transformação do mundo é possível e de que vale a pena acreditar nesse radicalismo é o nosso papel.