Unidas como as uvas estão no cacho

No cenário atual das lutas por direitos e pela igualdade, é importante estarmos atentes às manobras de poder que podem ensombrar as propostas e as conquistas dos movimentos sociais. Uma dessas sombras é o pinkwashing, uma estratégia do liberalismo para esvaziar politicamente movimentos emancipatórios e torná-los inofensivos. Outra é a contraofensiva da direita conservadora e da extrema-direita, que pretende fazer recuar direitos conquistados. Sobre ambas nos debruçaremos, em exercício crítico.

pinkwashing é uma estratégia de aproveitamento e esvaziamento políticos

pinkwashing é uma estratégia usada por alguns governos, empresas e instituições que, apresentando-se como defensores dos direitos LGBTQIA+, pretendem desviar a atenção das suas políticas controversas ou de violações de direitos humanos.

Um dos mais conhecidos e referidos exemplos de pinkwashing é o praticado pelo Estado de Israel, que, através de políticas favoráveis aos direitos queer, procura dar de si uma imagem de país progressista, tentando, por essa via, obscurecer ou relativizar aquilo que efetivamente é: um regime de apartheid e de violações continuadas dos direitos do povo palestiniano.

Outro exemplo de pinkwashing é aquele que observar-se em países que criminalizam a homossexualidade ou têm políticas opressivas em relação à comunidade LGBTQIA+. Alguns dos governos desses países tentam melhorar a sua reputação internacional, ratificando documentos e/ou sublinhando pequenos avanços ou ações isoladas voltadas para as comunidades queer, ao mesmo tempo que continuam a negar direitos fundamentais a essas pessoas no seu próprio território. 

purplewashing é uma outra face da mesma moeda, uma estratégia de lavagem de imagem através dos direitos das mulheres ou da igualdade de género. A Arábia Saudita, atualmente, leva a cabo uma campanha internacional de charme, convidando e desafiando à criação (remunerada) de vídeos (IA) promocionais que ilustrem “a transformação da Arábia Saudita, destacando o seu património, a mudança de visão sob a liderança de Mohammad Bin Salman e os ambiciosos planos para o futuro”. Numa das quatro mensagens-chave que o vídeo solicitado deve transmitir, são dadas instruções claras para “sublinhar a inclusão e a capacitação das mulheres na condução de mudanças económica e socialmente positivas”. O país da petroescravatura quer lavar a sua face e procura fazê-lo através da instrumentalização dos direitos das mulheres. 

pinkwashing não é, porém, uma prática exclusiva de Estados, é-o também de diversas instituições e corporações comerciais. Estas procuram beneficiar-se da imagem progressista associada ao apoio aos direitos LGBTQIA+, ao mesmo tempo que prosseguem as suas próprias práticas discriminatórias. Fazem-no através da mercantilização e da merchandização de uma causa justa, procurando esvaziá-la do seu potencial transformador, tornando-a neutra e inofensiva, mais um produto do mercado global e da cultura pop. Há casos de grandes corporações que desenvolvem conteúdos publicitários dirigidos especificamente à comunidade LGBTQIA+, que olham como nicho de mercado apetecível, com o objetivo não só de melhorarem a sua imagem, mas também de atraírem os seus membros como consumidores. No entanto, várias vezes, essas mesmas empresas têm não só histórico de práticas discriminatórias, como financiam grupos que promovem agendas contrárias aos direitos das populações não normativas. A comunidade LGBTQIA+ é olhada como negócio e o suposto compromisso com os seus direitos é tão-só instrumental e usado como benefício comercial.

A contraofensiva conservadora

Desde que o trumpismo normalizou o atavismo e a violência, a direita conservadora e a extrema-direita perderam aquilo por que vociferam: a vergonha. Vivemos tempos em que os movimentos e as causas emancipatórias enfrentam, em simultâneo, tentativas de instrumentalização e esvaziamento por parte do liberalismo e uma contraofensiva conservadora e radical de cujo programa faz parte o recuo de direitos conquistados pelas minorias e maiorias sem poder. Na mira desta contraofensiva, estão movimentos e ativistas antirracistas, queer e feministas.

Dos EUA de Trump ao Brasil de Bolsonaro, da Rússia de Putin à Polónia de Duda, da Hungria de Órban à Itália de Meloni ou às Filipinas de Modi, em todos os países em que a direita conservadora e a extrema-direita ganharam força ou estão/estiveram no poder, o seu programa de ação passa/passou por fazer recuar os direitos sexuais e reprodutivos e perseguir modos de vida não normativos. Nos EUA, o aborto legal passou a ser uma intervenção de difícil ou muito difícil acesso, desde o recuo da Roe vs. Wade que, durante meio século, garantiu a jurisprudência que assegurava o direito ao aborto. Na Polónia, as mulheres voltaram a ter de ocupar as ruas em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos entretanto revogados. Na Hungria foi aprovada uma lei que permite denunciar às autoridades pessoas e famílias LGBTQIA+, considerando que estas põem em causa “o papel constitucionalmente reconhecido do casamento e da família”. Na Rússia, a comunidade LGBTQIA+ está proibida de sair do armário: as marchas do Orgulho não são permitidas e a Constituição define o casamento como, exclusivamente, “a união entre um homem e uma mulher”. Na Arábia Saudita, o país do purplewashing, a homossexualidade é punida com pena de morte.

A legitimação destes governos abriu a caixa de Pandora: não só detêm – e usam – os instrumentos que lhes permitem fazer recuar leis, ou impedir que outras avancem, como a sua existência revigorou os movimentos que, não sendo poder, partilham a mesma cartilha, nomeadamente através do seu financiamento.

Movimentos como o Habeas Corpus e partidos como o Chega dão, por cá, corpo a este atavismo e ultrapassaram a fronteira da divergência de ideias: em junho de 2023, uma exposição promovida pelo Évora Pride, que propunha uma reflexão sobre o ódio à comunidade LGBTQIA+, foi vandalizada; na mesma cidade, um grupo de 3-5 homens invadiu e interrompeu, com insultos e agressões, a iniciativa Pride dos Pequeninos, na qual se procurava sensibilizar para a empatia, o amor e a não discriminação. 

A Target, uma empresa retalhista dos EUA, perante as ameaças de alguns clientes furiosos com a visibilidade do Mês do Orgulho nas suas lojas, retirou a coleção alusiva à quadra. 

A intimidação e a violência são, sem qualquer espécie de vergonha ou pudor, a linguagem desta gente, embrulhada, contudo, numa nova retórica: a defesa dos direitos das “nossas crianças”.

Ou avançamos todes, ou não avança ninguém

Embora o Europride tenha como objetivo celebrar a diversidade e promover a igualdade LGBTQIA+, é uma iniciativa construída a partir de patrocínios e parcerias comerciais. Muitas dessas empresas, como referimos, estão manchadas por práticas discriminatórias e usam o Orgulho para lavarem a sua imagem e se promoverem como inclusivas. É, por isso, necessário prestar atenção às práticas de pinkwashing e responder-lhes com clareza: o apoio às causas LGBTQIA+, e a todas as outras, faz-se com medidas concretas, e não proclamatórias, porque só essas alteram as condições de vida de quem vive discriminade.

No contexto português, é fundamental conhecer a história de luta e resistência da comunidade LGBTQIA+. As marchas do Orgulho têm ganhado cada vez mais expressão, representando um espaço de afirmação, visibilidade e reivindicação de direitos. Desde os primeiros corajosos protestos pela igualdade até às atuais marchas que atravessam todo o país, temos muito claro o que queremos: afirmar uma comunidade, reivindicar direitos, construir solidariedades e alianças. As marchas são dias de festa e luta, não são desfiles comerciais.

Continuar as lutas por uma sociedade justa, onde todas as pessoas possam viver sem medo de ser quem são, é, pois, o nosso compromisso. E, por isso, não cedemos nem nos curvamos perante o poder do dinheiro e as tentativas de instrumentalização. As nossas vidas não estão à venda, a nossa consciência não se verga, as nossas lutas e os nossos corpos não são mercadorias. 

O ativismo que nos interessa e que, em nosso entender, é capaz de responde às sombras, é o que se empenha e compromete com a transformação e a justiça sociais para todas as pessoas. A solidariedade é, por isso, o fio que entretece as nossas práticas e as nossas lutas, razão pela qual caminhamos lado a lado com outros movimentos sociais. Somos como as uvas de um cacho: só fazemos sentido se estivermos juntas, unidas. E é neste cacho que investimos as nossas vidas, os nossos corpos, a nossa esperança, para avançarmos todes e ninguém ficar para trás.