Violência e Imperialismo: o exemplo de Cabo Delgado

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Artigo de Guilherme Machado, estudante de História e ativista estudantil


Em 2017, na província de Cabo Delgado, estalou uma insurreição armada de um grupo islâmico fundamentalista. No seu caminho de destruição, abalaram a vida das comunidades locais, deixaram mortos para trás, e até hoje combatem contra as forças do exército moçambicano. O que foi mais importante foi a reação do mundo Ocidental, tendo em conta que um grupo terrorista fundamentalista é um excelente álibi para algo que é na verdade estrutural ao nosso sistema económico, e que está diretamente por trás da insurreição armada não apenas em Moçambique, mas como em vários outros países que preferimos conotar como “subdesenvolvidos”. Por outro lado, creio que este exemplo pode servir como o ponto de partida sobre uma reflexão da natureza e manifestações da violência na nossa sociedade, ao deixarmos de lado o aparelho de pensamento da ONU e da NATO no que toca à natureza das violências e da guerra e passando a um estudo mais localizado e historicamente contextualizado do fenómeno.

Um dos pilares do sistema capitalista é a relação entre o centro – os países que concentram em si o capital, a banca, os investimentos, a indústria e as próprias técnicas – e a periferia da rede de relações do sistema económico global. Nos séculos de expansão marítima europeia, existiam vários motivos para a expansão e colonização: seja a prata de Potosí ou a escravatura. Porém, esta relação altera-se de acordo com o paradigma político e económico europeu: depois de séculos de acumulação primitiva (concentração fundiária e aumento da produtividade, mas também comércio e atividades financeiras), a indústria desenvolve-se e o mundo da Europa ocidental muda com ela. Conhecemos bem os efeitos da industrialização e da ascensão de elites burguesas liberais nos principais países europeus, mas algo que a comunicação política escolhe ignorar é o impacto que o que fazemos aqui tem no resto do mundo. A industrialização e a necessidade de obter recursos, mão-de-obra e mercados com milhões de pessoas para comprar os produtos manufaturados levou a um processo de destruição, ocupação e desagregação completa das comunidades africanas, americanas e asiáticas. Na Índia, um experimento inicial de imperialismo foi desenvolvido no séc. XIX: as terras foram concentradas nas mãos de colonos ingleses, e os recursos agrícolas e naturais extraídos lentamente do país sem qualquer retorno para o território. No final, milhões de pessoas de um território cuja capacidade agrícola e industrial pré-colonial poderá surpreender muitos, morreram neste ensaio do colonialismo moderno. O mesmo aconteceu com Portugal, cuja moribunda e fraca indústria do Estado Novo era sustentada pelos enormes mercados das colónias, para onde eram exportados os produtos manufaturados de baixa qualidade. Até hoje, a mesma relação mantém-se entre o centro e a periferia. Com o mesmo capital acumulado sobre o caos e a destruição há séculos atrás – mas agora apresentado como “paz mundial” e “ajuda humanitária”. É agora conveniente realçar a existência de um dos maiores projetos de prospeção de gás em África na mesma região de Cabo Delgado onde se levantou a insurreição – o projeto de 20 biliões de dólares tutelado por um dos gigantes do petróleo, a francesa Total.

Ao discutirmos e observarmos a violência, temos a tendência a pensar – de forma liberal e realista – nos atos de violência localizados e individuais, como se o ato de impor violência aos corpos partisse de uma pura ação individual. Em muitos aspetos este pode ser o caso, mas sempre sob a forma de um indivíduo a perpetuar relações de poder generalizadas e mais universais. A verdade é que a desconstrução dos limites discursivos da violência leva-nos a uma situação na qual normas de género, a divisão do trabalho, o sistema policial e prisional e até as próprias escolas são vetores de transmissão de violência. Há um sistema global imperialista que sustenta as relações de produção capitalistas através de um monopólio centralizado da violência, e que se manifesta em todos os níveis da nossa vida quotidiana.