O “wokismo” é hoje uma espécie de fumo branco do consenso entre a direita e alguma esquerda mais liberal, na hora de apontar responsabilidades várias. Importa ir para lá da cortina de fumo.
Na sequência da vitória de Trump nas eleições norte-americanas, e perante o inegável crescimento da extrema-direita um pouco por todo o mundo, temos assistido a um súbito e consensual coro de lamentações em torno do alheamento dos problemas concretos das massas trabalhadoras por parte das forças políticas. De acordo com uma considerável fatia de chorosos/as comentadores/as, deve-se principalmente à esquerda política a responsabilidade por este esquecimento. Distraída pelas questões das identidades e da defesa das minorias, a esquerda ter-se-ia perdido de uma função de representação das classes laboriosas, permitindo a implantação do populismo de direita nos contextos e nos quotidianos do trabalho. Pior, a agenda woke, para fatia considerável dos comentários de direita – confundindo maliciosamente os crimes, cada vez mais evidentes, do hétero-patriarcado, com uma espécie de vigilância despolitizada de comportamentos e linguagens – teria tomado conta do espaço público, limitando o que se pode ou não dizer, fazer ou afirmar.
Por tudo isto, porque é preciso agir e pensar politicamente, para além de cortinas de fumo e de frivolidades despolitizadas, torna-se necessário distinguir a atitude “woke” de uma justa valorização das questões identitárias, alertando-se para a necessidade de não deixar que o discurso de afirmação das identidades caia nas malhas de uma espécie de panótico vigilante e punitivo.
Sílvia Federici: “Descolonização não é ler Fanon, em vez de Platão.”
Tomemos como ponto de partida uma entrevista, concedida pela filósofa Silvia Federici, em torno do passado e do presente das lutas feministas [“Women and Feminisms – Past and Present – Federici interviewed by Eirini Avramopoulou”]. Convidada a falar sobre a necessidade de descolonização do conhecimento nas Universidades e no ensino, a filósofa abre caminho à necessidade de refletir sobre as condições desta descolonização, cuja urgência é inegável. A sua resposta á clara: quando há propinas a pagar, quando o produtivismo académico e a precariedade laboral inundam a educação, quando o capitalismo não dá tréguas, há que assegurar o alcance e a abrangência de uma luta que é ampla e coletiva, que é sistémica e politicamente exigente. Sem pruridos, avisa Federici: “Descolonização não é ler Fanon, em vez de Platão. Descolonização é lutar para garantir que o conhecimento não está organizado como um instrumento de dominação”.
O sentido desta resposta serve, ao mesmo tempo, de toque a rebate quanto ao que há por fazer, tanto na educação como fora dela, na descolonização da ciência e da sociedade, como sugere desconfiança quanto a uma certa facilidade classificadora e persecutória, que se limita a substituir discursos, a vedar autores e autoras, a confundir a crítica com a simples recusa de confronto. Trata-se de uma despolitização sistemática, que o termo “wokismo” tem agregado com o auxílio dos media conservadores mas, também, com o contributo direto de uma esquerda liberal, mais conservadora do que estaria disposta a admitir.
O “wokismo” é um rótulo que funciona como uma camisa de forças, que não permite discussão real e que visa impedir qualquer possibilidade de réplica. Trata-se de uma importação, imperfeita e parcial, de uma expressão e de uma tendência que vem proliferando nalguns contextos norte-americanos, cujo decalque em contextos europeus e portugueses depende da acomodação da realidade à mesma lente que a gerou. Em contextos anglo-saxónicos, a palavra remete a “woke”, como propriedade de quem está, supostamente, “desperto/a” e “acordado/a” numa sociedade adormecida. Esse adormecimento social diria especialmente respeito a diferenças e a identidades marginalizadas, numa sociedade uniformizada e opressora.
O problema está no woke do wokismo
Até aqui, nenhuma questão, nenhum obstáculo aparente – com maior ou menor concessão à língua franca, nada parece dificultar o enquadramento da tal designação “woke” nos desígnios das lutas populares contra a injustiça sistémica. O problema surge quando essa designação, o “woke” desse “wokismo”, não apenas constitui um facilitismo de classificação muito confortável à ordem dominante, como serve de elemento despolitizador de posicionamentos, ao isolar bandeiras e construir reivindicações num quadro concorrencial totalmente adequável a um senso comum de direita. O termo “woke”, além de arma de arremesso eficaz, repetida pela direita e altamente legitimada pelos media, é um fator de despolitização que se reflete no interior da própria esquerda, como uma espécie de fechamento identitário, isolacionista e fortemente sectário. Tendo por elemento um certo conservadorismo (de direita, claro, mas também de esquerda), o rótulo preguiçoso do “wokismo” diz respeito à velha e equívoca essencialização das diferenças, que resulta na ocultação da natureza sistémica das desigualdades económicas, sociais e políticas, que se mantêm intocadas ante um debate totalmente aclimatado à rapidez proliferante dos novos media e das redes sociais.
Foi razoavelmente difundido, entre nós, um livro de Susan Neiman [“A esquerda não é woke”], onde se acusa o “wokismo” de perversão dos valores históricos da esquerda, em nome do que, no fim de contas, seria apenas uma agenda atomizada. Para Susan Neiman, a abordagem woke confina cada grupo oprimido ou marginalizado ao “prisma da sua própria marginalização”, de tal forma que essa marginalização passa a ser uma espécie de lente única a partir da qual se perspetiva a realidade social. Ainda que progrida, quanto a nós, em moldes bastante discutíveis, o livro parte de uma descrição eficaz, por denunciar um ponto de partida que faz recuar a luta social a um critério privado, particular, que se aproxima perigosamente de uma espécie de conservadorismo ensimesmado e securitário, cheio de certezas dogmáticas e esvaziado da amplitude da luta coletiva. Tal como o próprio neoliberalismo, trata-se de uma abordagem individualista e competitiva da política, que retira de um marco referencial privado a tendência para uma postura reativa, que não sai da espuma dos dias nem chega a ameaçar as mais fundas raízes da injustiça sistémica. A postura woke isola-se na sua própria agenda identitária, que facilmente se desliga das alianças de classe e da orgânica coletiva, essenciais para uma luta anticapitalista consequente.
E a classe, pá?
Isto não significa a desvalorização das questões da identidade, que se mantêm centrais na disputa do tempo e nas batalhas de toda e qualquer esquerda que mereça o seu nome. Trata-se, antes, de assegurar o direito às diferenças num quadro que não abdique da profundidade crítica da máquina capitalista de produção e de legitimação de injustiças, como das formas mais díspares de subalternidade e de circuitos opressores. Não há nenhuma oposição, ao contrário do que há muito veicula uma abordagem ortodoxa e transversalmente conservadora, entre luta de classes e luta pela identidade e pelos direitos sociais. Há, sim, uma interligação fundamental, que é preciso garantir contra a frivolidade apolítica do individualismo conservador, incapaz de constituir bases de diálogo assentes na aliança e na organização coletiva contra o capitalismo, enquanto rolo compressor de diferenças, a partir do qual as opressões concretas se tornam legíveis e combatíveis.
O desafio está na articulação entre uma consciência de classe, que reconhece a tendência universalizadora dos seus combates e as questões identitárias, enquanto expressão e reflexo das relações desiguais de poder numa sociedade capitalista. É preciso sublinhar que não existe oposição entre classe e identidade. Por isso mesmo, por configurar uma atitude despolitizada de sobreposição identitária, em vez de afirmação de diferenças subalternizadas por um mesmo sistema de dominação, o wokismo é o conservadorismo de esquerda que a direita prefere.